terça-feira, 15 de maio de 2012

Paraísos Artificiais


           Não Fosse Pelo Cacoete...

           É bastante perceptível o esforço de Marcos Prado em não exercer juízo de valor nem tornar caricata a realidade paralela regada a drogas ilícitas pela qual transitam os jovens de Paraísos Artificiais (Brasil, 2012). O êxito de tal empenho não impede, porém, que o diretor seja vencido por um cacoete típico do filme-documentário¹ - gênero, aliás, que revelou o cineasta -, qual seja a linguagem-diagnóstico.
           Dentro deste contexto, o longa-metragem sugere que os excessos da juventude não necessariamente tardam a ser pagos, premissa essa que infelizmente não tem seu potencial explorado em plenitude graças a distância estabelecida entre as realidades do diretor e dos seres retratados, o que, consequentemente, acaba influenciando na recepção do material filmado pelo espectador que, por sua vez, é mantido na condição de voyeur sem jamais ser estimulado a se tornar cúmplice dos protagonistas e/ou de seus estilos de vida².
           Essa relação de alteridade, vale dizer, é o que limita Paraísos Artificiais a condição de uma mera história bem contada. Neste aspecto, a narrativa garante a atenção do público em razão de uma eficiente edição não-linear que, na medida do possível, dificulta a descoberta precoce das informações necessárias a montagem do quebra-cabeça. Somem-se a isso os ótimos trabalhos de direção de arte e de fotografia que retratam com fidelidade o ambiente característico das festas rave, bem como a estonteante interpretação de Nathalia Dill que consegue a façanha de ameaçar o trono de Camila Pitanga (e seu Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios) no quesito atuação mais sexy do ano.
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1. Em sua fase modernista.
 
2. Exemplo contrário, neste sentido, pode ser visto em Mistérios e Paixões (David Cronenberg, Canadá, 1991).

Ficha Técnica
Direção: Marcos Prado  
Roteiro: Cristiano Gualda, Marcos Prado, Pablo Padilla
Produção:James D'Arcy, José Padilha, Lili Nogueira, Marcos Prado, Tereza Gonzalez
Elenco: Nathalia Dill (Érika)Luca Bianchi (Nando)César Cardadeiro (Lipe)Divana Brandão (Márcia)Cadu Fávero (Anderson)Erom Cordeiro (Carlão)Roney Villela (Mark)Lívia de Bueno (Lara)Bernardo Melo Barreto (Patrick)Emílio Orciollo Neto (Mouse)
Estreia: 4 de Maio de 2012
Duração: 96 min.
Curiosidade: O título do filme faz “referência ao livro homônimo de 1860 em que o poeta francês Charles Baudelaire descreve seus delírios sob efeito do ópio e do haxixe e advoga-os como meio para buscar um estado humano ideal” (FONTE: Revista Veja. Ed. 2268. Ano 45. N° 19. São Paulo: Abril, 09.05. 2012. p.163). 


 Dario Façanha (texto originalmente publicado em http://www.setimacritica.blogspot.com)

sábado, 12 de maio de 2012

Drive/Taxi Driver

                                                 Fúria ao Volante

              Não é exagero dizer:  (EUA, 2011) representa para o cinema deste novo século aquilo que Taxi Driver (EUA, 1976) representou no passado. Neste passo, os filmes apresentam narrativas bastante semelhantes cujas reflexões fomentadas traçam, porém e felizmente, trajetórias paralelas.
              No filme de Martin Scorcese o protagonista Travis Bickle (Robert De Niro) é um ser solitário que ocupa as noites de insônia trabalhando como motorista de taxi. Ao volante do carro, Bickle convive com aquilo que para ele sintetiza a escória da sociedade americana: prostitutas, ladrões, viciados, cafetões, traficantes e afins, realidade essa que aos poucos transforma a letargia do personagem em repulsa - sensação, aliás, agravada após sua fracassada tentativa de contato com membros da classe social privilegiada, no que se inclui, sobretudo, o interesse romântico afastado em razão do temperamento bruto do motorista.

             Convicto de que a cidade toda constitui um esgoto a céu aberto, Bickle deixa que a pscicopatia lhe tome conta e começa a montar um arsenal capaz de exterminar considerável parcela do que lhe desagrada. Curioso, dentro deste contexto, é que sua explosão de violência tem como fim um ato de solidariedade, qual seja o resgate de uma adolescente que se prostituía sob a égide de um inescrupuloso amante. Assim, o que poderia ser compreendido como um ato de barbárie ganha contornos heróicos pela mídia, acarretando, por conseguinte, a aclamação de Bickle e o interesse por parte daqueles que antes lhe voltavam as costas.
            Em Drive o motorista lacônico e sem nome interpretado por Ryan Gosling pode a primeira vista parecer diferente do verborrágico Travis, todavia, a solidão enfrentada pelos dois é um fator que lhes aproxima, tal qual o cotidiano violento por eles testemunhado. O personagem de Gosling, por seu turno, assume de imediato uma vida dupla ao trabalhar em meio período como dublê de motorista para produções cinematográficas e outro restante do dia como ‘chofer’ de assaltantes. O contato nutrido com esses tipos criminosos leva o protagonista a aceitar um serviço apenas pela generosidade de livrar de apuros o marido da mulher por quem o primeiro se apaixonara. Logo, é também em razão da bondade que a violência atinge seu ápice em Drive - que, ao contrário de Taxi Driver, não garante ao término redenção de qualquer grau ao personagem principal.
            Em ambos os filmes a violência é pontual, irrompendo, não raro, sem aviso explícito. Sua função atinge, contudo, destinos distintos, eis que na obra de Scorcese se busca estudar o comportamento de toda uma sociedade a partir da ótica de uma pessoa, enquanto na produção dirigida por Nicolas Winding Refn a abordagem, em permanecendo restrita aos personagens principais e coadjuvantes, não almeja reflexões sobre o coletivo, daí a distinção entre os términos: Travis Bickle vira herói graças a ignorância ou omissão de um povo quanto a suas próprias mazelas, ao passo que o homem anônimo de Drive segue sendo o ninguém de antes, sem passado e provavelmente sem futuro.
             Frise-se, ainda, que os dois longas-metragens vão descortinando camadas e gêneros. Iniciam-se como dramas, adotam, em seguida, a toada do suspense para, já no clímax, transitarem com a faceta do horror, sem largar mão, vale dizer, de uma linguagem pop. Scorcese, por exemplo, imita Hitchcock aparecendo em determinadas sequências e, indo além, coloca nas mãos de Robert de Niro um objeto expressivo como a Magnum 44 e em sua cabeça um icônico corte de cabelo moicano¹. Por sua vez, N. W. Refn, veste seu trabalho com uma roupagem vintage a moda anos 80 e seu ator principal com uma jaqueta reluzente que as costas traz um enorme escorpião, composição visual essa a qual se soma uma palito de dentes pendurado entre os lábios do personagem e um martelo por ele utilizado com tanta crueldade quanto o fez o protagonista de OLDBOY (Coréia do sul, 2003).
             No que se refere especificamente a Drive é possível concluir que é justamente ao trabalhar com idéias não necessariamente originais que N. W. Refn demonstra seu talento, afinal, resta nítida sua habilidade em criar emoções novas a partir de plots não inéditos. A tensão, desta feita, é construída com fulcro nos três elementos da trilha sonora – fala, música e ruídos – o que torna este filme de golpe uma experiência tão superlativa quanto o trabalho de Martin Scorcese.
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1.Segundo Paul Schrader não havia qualquer referência a esse corte de cabelo em seu roteiro. Neste sentido, Martin Scorcese teria tomado tal decisão na véspera da filmagem da primeira cena em que Travis Bickle aparece com esse visual, após receber de um veterano do Vietnã a informação de que os soldados adotavam tal corte sempre que pressentiam que não retornariam da missão a ser executada nem volta.

 Dario Façanha (texto originalmente publicado em http://www.setimacritica.blogspot.com)

COTAÇÕES:
Drive - ۞۞۞۞        
Taxi Driver - ۞۞۞۞۞ 
 

Ficha Técnica – Drive
Direção: Nicolas Winding Refn                    Roteiro: Hossein Amini, James Sallis
Produção: Adam Siegel, Gigi Pritzker, John Palermo, Marc E. Platt, Michel Litvak
Elenco: Tiara Parker (Cindy) Albert Brooks (Bernie Rose)Oscar Isaac (Standard Guzman)Cesar Garcia (Jose / waiter)Bryan Cranston (Shannon) Chris Muto (Jack)Christina Hendricks (Blanche)Carey Mulligan (Irene)Ryan Gosling (Driver) Russ Tamblyn (Doc)Ron Perlman (Nino) Kaden Leos (Benicio)John Pyper-Ferguson (Bearded Redneck) Jeff Wolfe  (Tan Suit)James Biberi (Chris 'Cook')
Estreia Mundial: 16.09.2011
Duração: 95 min.

Ficha Técnica – Taxi Driver
Direção: Martin Scorcese             Produção: Michael e Julia Phillips
Roteiro: Paul Schrader                 Música: Bernard Hermann
Elenco:Albert Brooks (Tom) Peter Boyle (Wizard) Bob Maroff (Mafioso)Robert De Niro (Travis) Harvey Keitel ('Sport' Matthew) Jodie Foster (Iris Steensma)Norman Matlock (Charlie T) Leonard Harris (Senador Charles Palantine) Martin Scorsese (Homicidal Passenger in Travis' Cab) Peter Savage (The John)Cybill Shepherd (Betsy)Maria Turner (Angry Hooker)
Estreia no Brasil: 22.03. 1976.         Estreia Mundial: 08.02.1976
Duração: 114 min.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

A Cidade no Cinema


A cidade sempre foi e acredito que sempre será significativa no cinema. O que diferencia os diversos pontos de vista lançados sobre a mesma em cada nova película que o tema tem significativa importância no desenrolar da história, é a maneira de representa-la e seu grau de interferência na vivência dos personagens representados. A exemplo disso temos o filme “Sinfonia de Paris” vencedor do Oscar de Melhor Filme em 1952, dirigido por Vincente Minnelli (Gigi, Agora Seremos Felizes) no qual o ex-soldado americano Jerry Mulligan, representado por Gene Kelly (Cantando na Chuva, Marujos do Amor), mudou-se para Paris e tornou-se pintor de quadros que retratam a cidade que tanto admira, e mesmo sem recursos para manter uma residência digna, este não se mostra nenhum pouco frustrado ou mesmo preocupado com a realidade que o cerca, muito pelo contrário, Mulligan distribui sorrisos e simpatia, se dizendo sortudo pelos amigos que cultivou na vizinhança em que vive.
No filme não presenciamos nenhum momento em que Mulligan tenha dificuldades para apreciar o maravilhoso desjejum parisiense, ou mesmo um sequer instante em que este se comporte de forma pouco ética, sobretudo quando cai nos encantos de Milo Roberts (Nina Foch), a viúva rica que por admirar o trabalho do pintor, o qual se mostra tão apegado a suas obras, por jamais acreditar que um dia venderia alguma de suas telas, decide patrociná-lo. Tudo isso pelo simples fato de ser um artista, habitante da encantadora Paris que tanto o comove. Situação contrária a de seu amigo, o concertista de piano desempregado Adam Cook (Oscar Levant), este sim, revela certo desprazer com a vida que leva na capital francesa.
Mas se Paris é bela em qualquer estação, o mesmo não se pode dizer de Buenos Aires no filme argentino “Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Virtual” de Gustavo Taretto (2011). Em seu primeiro longa-metragem, Taretto confirma o que já era notável em seus curtas-metragens (Hoje Não Estou, Uma Vez Mais) um olhar apurado para captar a realidade urbana presente em toda grande cidade, sobretudo a dos países subdesenvolvidos. E por dominar tão bem a essência de todos os problemas que os grandes centros urbanos apresentam, Taretto logra o êxito de transformar a realidade em algo encantadoramente belo. No inicio do filme acompanhamos uma seleção de imagens que nos comprovam o que a narração do personagem Martín (Javier Drolas) afirma: o crescimento descontrolado e imperfeito de Buenos Aires, tal seleção e narração são concluídas com a ideia de que problemas tais como divórcios, falta de comunicação, depressão, suicídios, neuroses, obesidade, sedentarismo, entre outros tantos, são culpa dos arquietos e incorporadoras. Além do que, Martín afirma ser acometido por todos os problemas por ele enumerados, a exceção do suicídio.
Ao acompanhar o cotidiano, as preferências, gostos e fobias de Martín e Mariana (Pilar López de Ayala), só podemos ter a certeza que ambos se completam, e esperar o momento em que o encontro entre eles ocorrerá, e a vilania arquitetônica quase nos deixa sem esperanças. Mas se a arquitetura e o urbanismo separam, o mundo virtual une e renova nossas esperanças. Esse é o grande trunfo de “Medianeras”, fazer com que o espectador se reconheça na realidade proposta pelo filme e imagine que o mesmo pode se passar na sua própria vida. A proposta é atual e verossimilhante ao contexto de cidade que conhecemos e as relações virtuais que estabelecemos, a qual tem como grande vantagem o fluxo de informação e a infinidade de conhecidos, que não se limitam mais ao seu bairro, escola, círculo familiar ou de amigos, as possibilidades são indeterminadas, o mesmo não se pode dizer do contado, limitado aos sentidos da visão e audição.
E quando se fala em cidade, como não lembrar do conceito utilizado por King Vidor, em filmes como “A Turba” (1928) e “No Turbilhão da Metrópole” (1931) que recai sobre as relações sociais estabelecidas nos centros urbanos, por vezes pouco amistosas e muito competitivas, tornando-se muitas vezes indissociáveis  ao simples habitar determinado local. Semelhante ao que ocorre em “O Homem ao Lado” (2009) longa argentino dos também estreantes Gastón Dupra e Mariano Cohn, no qual o designer bem-sucedido Leonardo (Rafael Spregelburg), que habita, juntamente com sua família, a única edificação de caráter residencial projetada pelo arquiteto modernista francês Le Corbusier em toda América, projeto de 1948. Criador do conceito da “Máquina de Morar”, o qual pregava que a casa deveria ser bonita e confortável, mas também lógica, funcional e eficiente, perfeitamente apta para atender às necessidades dos ocupantes. Conceito suplantado pelos arquitetos contemporâneos (não somente argentinos), segundo a dramática narração de Martín no filme “Medianeras” referido acima.
Mas “O Homem ao Lado” não quer nos tornar empáticos nem a causa do arrogante e prepotente Leonardo, muito menos a causa de Victor (Daniel Aráoz), vizinho inconveniente e grosseiro que tenta de toda maneira rasgar uma janela em uma das paredes de sua casa, a qual tiraria toda privacidade da residência de Leonardo, mas lhe traria os raios de sol que tanto alega desejar desfrutar. Nesse jogo de interesses divergentes, nenhum dos dois em momento algum se apresenta de forma simpática ao espectador, que não consegue estabelecer uma relação de identificação, fazendo com que toda aquela situação seja apenas cômica, pois Leonardo se apresenta cada vez mais desprezível e Victor cada vez mais absurdo. E levando em consideração que em geral, a caracterização cenográfica das cidades no cinema, tende a nos transmitir ou complementar características dos personagens ou simples estados de espírito, vemos exemplos fantásticos da relação cinema e arquitetura ou urbanismo e o quanto essa relação pode nos possibilitar películas geniais ou não.

Salma Nogueira.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Cabra Marcado Para Morrer/Santiago

          O Real no Documentário Nacional a Partir da Direção do Olhar

I.Breve Contexto Histórico do Documentário no Brasil

           Os registros documentais feitos no Brasil, na época do cinema mudo, dividem-se em dois tipos, quais sejam:
a)berço esplendido: mostram um Brasil selvagem, de natureza desconhecida e exuberante (é o caso dos registros feitos durante as expedições do Marechal Rondom);
b)rituais de poder: são produções feitas por e para as elites (ex: registros de batizados, aniversários) - o povo quando aparece o faz de forma indesejada.
           Na virada dos anos 50 para 60 emerge no país o documentário independente, responsável pela instituição da fase modernista do gênero. Dito isso, Aruanda (Linduarte Noronha, 1960) é compreendido como a obra que inaugura esta fase moderna do gênero, afinal, o que nele se vê é uma problematização das mazelas sociais, característica essa que o distingue dos dois tipos de documentários anteriormente produzidos, bem como dos filmes de cavação (obras feitas sob encomenda de núcleos empresariais, como, por exemplo, o grupo Votorantim). O olhar de Aruanda¹, voltado ao coletivo, aos problemas sociais de um povo abandonado a própria sorte, atribuiu ao documentário brasileiro novos objetivos e constatações, quais sejam:
- o papel crítico/sociológico do documentário moderno o distingue daqueles produzidos pelo INCE – Instituto Nacional de Cinema Educativo, eis que, apesar de ainda lançar mão da técnica da encenação, a meta a partir de então é por o povo na tela para, desta feita, quebrar a invisibilidade de outrora;
- o documentarista lança seu olhar e diagnostica os problemas sociais do país, numa tomada de distância que mantém o devido afastamento entre a realidade do cineasta e a realidade gravada;
- neste passo, considerando que as limitações tecnológicas ainda eram uma constante e que, portanto, era impossível a gravação de som direto sincrônico, lançava-se mão de uma herança do documentário clássico, qual seja comentário do narrador, daí ser comum a inserção de comentários em formato de diagnóstico (narrados em voz over), o que, como outrora sugerido, ensejava uma forte relação de alteridade, eis que o realizador do filme parecia ser mais sabedor dos motivos da miséria do que os próprios miseráveis².

II.Cabra Marcado Para Morrer. O Nascimento do Documentário Contemporâneo

            Cabra Marcado Para Morrer (Brasil, 1984), representa a retomada de um projeto de Eduardo Coutinho interrompido em 1964 por conta do golpe militar. Dito isso, a partir das poucas imagens gravadas que sobraram daquele período e com base em suas lembranças pessoais, Coutinho traça um paralelo entre passado e presente ao registrar entrevistas das pessoas envolvidas com a produção durante a década de 60. 

            Jean-Claude Bernardet, afirma que o filme é um divisor de águas dentro do gênero, tendo em vista sua tendência híbrida, na qual coexistem as naturezas moderna (abordagem do coletivo – situação de trabalhadores vilipendiados por latifundiários) e contemporânea (abordagem individual – conseqüências singulares arcadas por cada indivíduo³).
           Isto posto, enquanto as imagens de 1964 são encenadas – até porque trabalhadas com base em um roteiro pré-definido – as imagens da década de 80 são frutos de gravações abertas que narram:
- tanto a aventura e o risco assumido pelo cineasta ao retomar um trabalho cujos envolvidos poderiam não estar sequer vivos,
- como o resultado arcado por trabalhadores e famílias que durante anos foram perseguidos por um Estado não democrático que sufocava toda e qualquer forma de revolta popular⁴,
daí ser possível afirmar que estas diferentes abordagens sintetizam vinte anos de evolução da linguagem documental no Brasil.
            O olhar em Cabra Marcado Para Morrer transita, portanto, entre o coletivo mas também sobre as unidades que compõem o todo, no que se inclui, ainda, a reflexão sobre o avanço da própria linguagem cinematográfica enquanto meio de expressão de um diagnóstico previamente determinado por uma equipe de produção e enquanto instrumento de investigação e de alcance de uma suposta verdade apontada, desta vez, pelos próprios seres retratados.
            Aliás, os filmes de Coutinho, regra geral, funcionam como lugares de investigação, tendo em vista a ausência de pesquisa e de argumento prévios, daí ser inegável a importância da entrevista para o cineasta, já que é através dela que o mesmo descobre o que não sabe. Mediante uma técnica própria de entrevista, Coutinho não trata seus entrevistados como tipos humanos coletivos, estratégia essa que, ressalte-se, tanto promove os deslocamentos de autoria (dos objetos do olhar), quanto, em última instância, consagra o documentário contemporâneo.

III. Santiago. Novas Possibilidades Para o Documentário Contemporâneo

           Tal como feito por Eduardo Coutinho em Cabra Marcado Para Morrer, João Moreira Salles retoma um projeto que abandonara na sala de edição em 1992, qual seja o documentário Santiago (Brasil, 2007). Ao analisar o material bruto filmado naquele ano, Salles realiza um ato de mea culpa seja em razão de sua postura enquanto cineasta empenhado em fabricar imagens e depoimentos, seja em virtude de sua conduta pessoal que jamais permitiu a quebra das barreiras sociais existentes entre ele na condição de filho do patrão e Santiago na posição subalterna de empregado. 
         Filmado sempre através de portas, Santiago, mesmo que por vezes tente, permanece enclausurado em sua instância de classe média baixa, daí sua admiração por classes aristocráticas de outrora poder ser compreendida como uma espécie de fuga. Salles percebe isso tarde demais, eis Santiago já havia falecido quando da retomada do projeto; todavia, ainda que de forma intempestiva, o documentarista não só concebe uma bela homenagem a um ser fascinante, como também revela, numa linguagem metalingüística, o próprio fazer fílmico enquanto atividade que maqueia ou até impede a verdade de vir a tona. Como atestam Cláudia Mesquita e Consuelo Lins: “Raras vezes na história do documentário um cineasta explicitou de tal maneira segredos que ficam, na maior parte dos casos, perdidos no material não usado dos filmes”⁵.
         Salles, portanto, discorre sobre um ser singular cuja relação com ele próprio o leva a também falar de si, enquanto homem e/ou cineasta, e das mudanças sutis que experimentou ao longo da vida, daí restar mais do que nítida a classificação do trabalho enquanto documentário contemporâneo.
             Uma vez que sua obra também é um estudo sobre a arte de fazer um filme, em especial do gênero documentário, Salles aproveita, já próximo ao término, para revelar a influência de seus rígidos enquadramentos: Yasujiro Ozu e seu Era Uma Vez em Tóquio (Japão, 1953). Neste diapasão, a posição estática da sua câmera pode até ser parecida ao método do diretor japonês, porém, o que há por trás desses planos parados são intenções que se diferenciam. Ozu utiliza uma linguagem minimalista que jamais exerce juízo de valor sobre seus personagens; dentro deste contexto, planos fixos e vagarosos funcionam para gerar intimidade entre as figuras criadas e o espectador que, desta feita, é levado, com base no exemplo fílmico a rever condutas que na verdade são suas, daí que ao fim da experiência os personagens resultam ilesos mas o público não. Já a fotografia rígida e distante de Santiago revela um julgamento implicitamente feito por Salles a época das filmagens em 1992 e explicitamente reconhecido pelo mesmo em 2007. Com efeito, portas e maçanetas são signos mais que evidentes do abismo existente entre as realidades do criado (Santiago) e do filho do patrão (Salles). Para os menos implacáveis as portas que se põem a frente de Santiago podem indicar as barreiras que limitam seus anseios aristocráticos, o que, ainda assim, não exclui a sensação de que aquela decupagem sintetiza o conteúdo emocional/ideológico de um artista em um determinado período de sua vida.

IV.    CONCLUSÃO:

               O que é mesmo um documentário? Sua definição necessariamente se dá em oposição ao campo da ficção?
               A resposta, por certo, é negativa tendo em vista que ainda hoje, embora numa escala menor, sejam feitos documentários embasados em encenações do cotidiano. Somando-se a essa constatação o fato de que a presença da câmera modifica performances, resta a conclusão de que o filme documentário não substitui a verdade, não sendo, portanto, um espelho do real, mas apenas um recorte alcançado a partir de determinadas eleições, isto é, uma construção fílmica produto da escolha de abordagens.
             Se Cabra Marcado Para Morrer abriu novos caminhos ao, enquanto experiência documental híbrida, marcar a transição da fase moderna para contemporânea do documentário brasileiro, Santiago consagrou em definitivo esta última vertente ao ampliar o viés metalinguístico da obra de Coutinho através da reflexão inerente a o que é ou não real seja enquanto composição plástica/estética seja enquanto trabalho criador de tipos humanos. A resposta para as incertezas fomentadas talvez advenha da conclusão obtida pelos próprios cineastas de que estes são filmes que apenas eles, respectivamente, poderiam fazer, o que, por certo, garante as obras uma autenticidade capaz de superar a dúvida sobre o que é ou não espontâneo, verdadeiro.
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1.    O recorte de Aruanda incide sobre o trabalho artesão feminino. Dentro deste contexto, o curta-metragem trabalha com encenação do passado, ou seja, põe em cena um tempo anterior, mas não o faz de forma espetacular nem naturalista (até porque a situação de miséria do passado se mantinha no tempo presente de sua concepção), sendo este um dos motivos pelos quais Aruanda é apontado como precursor da estética da fome cinemanovista.
2.    Viramundo (Geraldo Sarno, 1965) é outro exemplo de documentário moderno deste período, afinal, em sendo um dos filmes pioneiros na utilização de som direto, tornou-se possível dar voz ao povo que, desta feita, passa a falar por si mesmo, o que, entretanto, não implica, ainda, numa total liberdade da fala, visto que o modelo deste filme é sociológico, daí porque a fala é controlada para fazer dos personagens tipos sociológicos.
3.    No filme a família da protagonista representa a fragmentação de um povo a partir da desigualdade, da luta de classes e do golpe militar.
4.    As Ligas Camponesas vinham sendo criadas desde meados dos anos 50 com o objetivo de conscientizar e mobilizar o trabalhador rural na defesa da reforma agrária. Durante o governo de João Goulart (1961-64), o número dessas associações cresceu muito e, junto com elas, também se multiplicavam os sindicatos rurais. (FONTE: http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=242. Acesso em 10.03.2012)
5.    Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 77




Dario Façanha (texto originalmente publicado em http://www.setimacritica.blogspot.com)

COTAÇÕES:
Cabra Marcado Para Morrer - ۞۞۞۞        
Santiago - ۞۞۞۞۞  

 FICHA TÉCNICA - Cabra Marcado Para Morrer
Direção e Roteiro: Eduardo Coutinho
Produção: Eduardo Coutinho, Vladimir Carvalho, Zelito Viana
Duração: 119 minutos

FICHA TÉCNICA - Santiago
Direção e Roteiro: João Moreira Salles
Duração: 80 min.