quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Blade Runner – O Caçador de Andróides

Distopia Pós-Moderna

Lançado originalmente em 1982, Blade Runner – O Caçador de Andróides pode ser encarado ainda como herança dos tempos de pessimismo e desesperança acarretados pela derrota dos EUA no Vietnã, pelo escândalo do Watergate, pela tensão da Guerra Fria e pelo desastre ambiental resultado a partir do naufrágio, em 1978, do navio petroleiro Amoco Cadiz, motivo pelo qual ainda não se vislumbra na produção o cinismo que ao longo da década assolaria o cinema norte-americano.
Neste contexto, a distopia atua como fio condutor de uma trama cujo desenvolvimento se dá num planeta Terra devastado por acidentes ambientais e mudanças climáticas, daí a luz do sol pouco brilhar e as noites, além de longas, serem marcadas por intermináveis chuvas ácidas. Somado a isso, os conceitos de nação e de fronteira já não tem nenhum sentido, eis que orientais, árabes, latinos, europeus e americanos passam a dividir o mesmo espaço caótico deixado para aqueles que por limitações eugênicas não puderam aderir ao êxodo responsável pelo povoamento de colônias extraterrestres.
Em se tratando, portanto, de uma terra de ninguém, o Estado se torna ausente – exceto no que tange seu poder de polícia – deixando nas mãos de grandes companhias privadas uma economia arruinada pela desvalorização da moeda¹. Não fosse o bastante, a convivência homem-robô tanto funciona para estabelecer novas opções de relações afetivas e/ou sexuais, quanto instiga no primeiro o medo não só de ser superado, como também de ser esquecido em razão de sua finitude² – aspecto esse para o qual o diretor Ridley Scott aponta, mediante a quebra da Santíssima Trindade, a insuficiência da Igreja perante a angustiante certeza da morte.
Embora seja uma ficção científica quase trintenária, é interessante como Blade Runner permanece atual tanto em seu conteúdo quanto em sua forma, eis que:
·      a degradação ambiental e os limites éticos da cibernética permanecem na pauta de discussão internacional;
·       a concepção visual imaginada por Scott não parece em momento algum ultrapassada quando comparada aos mais recentes exemplos do gênero, mérito esse, vale frisar, devido aos estupendos trabalhos de fotografia e de direção de arte que unem elementos high-tech e retrôs num conjunto harmônico emoldurado por uma ambientação decadente de tons noir e, por conseguinte, expressionistas³.
Considerando, portanto, a qualidade com que oferece um leque tão vasto de leituras, soa injusto, então, que Blade Runner permaneça atrelado ao rótulo de cult movie, afinal, em primeiro lugar, o reconhecimento de público e crítica fora consideravelmente ampliado a partir do lançamento, em 1992, da chamada versão do diretor – daí o apelo do longa-metragem não poder mais ser compreendido como restrito a um nicho específico de adoradores – e em segundo lugar porque já é mais do que tempo do filme ser reconhecido como o clássico pós-moderno que é.
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1.     Por isso, produtos passam a ser pagos mediante a pergunta ‘isso é o suficente?’.
2.     Seja Deckard um replicante ou um homem, algo por ele nutrido é semelhante às duas espécies: o medo de perder, ante a proximidade da morte, o que um dia fora visto, experimentado e sentido.
3.     Se a perseguição aos andróides possui uma toada detetivesca, conforme o estilo de Raymond Chandler, os personagens e cenários distópicos, por sua vez, emulam o expressionismo alemão de obras como Metropolis e O Gabinete do Dr. Caligari.
4.     Autorreferencial e consciente, o cinema pós-moderno bebe da fonte de uma cultura cinematográfica comum aos cineastas e ao público. Seu estilo, estrutura, enredos, composição de personagens e vocabulário técnico se inspiram em vários gêneros e clichês do passado, diluindo as fronteiras que separam a alta e a baixa culturas” (BERGAN, Ronald. ...Ismos - Para Entender o Cinema.São Paulo: Globo, 2010. p. 124).
 
Dario Façanha (texto originalmente publicado em http://www.setimacritica.blogspot.com)
 
COTAÇÃO۞۞۞۞۞

Ficha Técnica
Título Original:
Direção: Ridley Scott
Roteiro: Hampton Francher e David Webb Peoples baseado em obra de Philip K. Dirk
Produção: Michael Deeley
Elenco: Daryl Hannah (Pris)Rutger Hauer (Roy Batty) Kevin Thompson (Bear) M. Emmet Walsh (Bryant)Joe Turkel (Eldon Tyrell) Edward James Olmos (Gaff)Morgan Paull (Holden) Hy Pyke (Taffey Lewis) Harrison Ford (Rick Deckard)Ben Astar (Abdul ben Hassan)Brion James (Leon Kowalski)Tom Hutchinson (Bartender)James Hong (Hannibal Chew)Joanna Cassidy (Zhora)Carolyn DeMirjian (Saleslady)Bob Okazaki (Howie Lee) John Edward Allen (Kaiser)Sean Young (Rachael) Judith Burnett (Ming-Fa)William Sanderson (J.F. Sebastian)
Música: Vangelis
Fotografia: Jordan Cronenweth
Direção de Arte: David L. Snyder
Figurino: Michael Kaplan e Charles Knode
Edição: Marsha Nakashima
Estreia Mundial: 18.09.1982
País de Origem: Estados Unidos
Duração: 117 min.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Soul Kitchen


      “Soul Kitchen”, filme de 2010 do diretor turco-alemão Fatih Akin (Conta a Parede; Do Outro Lado), é de um apuramento estético primoroso, que aliado a atuações descontraídas e pouco compromissadas com qualquer formalidade, dão o tom leve e bem humorado do filme. Zinos Kazantsakis (Adam Bousdoukos) é o dono do restaurante que recebe o nome de “Soul Kicthen”, pois Zinos é um grande apreciador da música soul, gênero musical com influencia do rhythm and blues e do gospel, tal estilo surgiu entre as décadas de 1950 e 1960 entre os negros norte americanos. Tal apreço é facilmente detectado, não unicamente pela magistral trilha sonora que rege o filme do inicio ao fim, a qual não é unicamente composta pelo gênero soul e deve-se ressaltar a bela presença de músicas gregas, mas também pela vestimenta e pela decoração da residência em vão livre, de Zinos.
      O grego com pouca prática culinária, ganha a vida com um cardápio a base de comida congelada, que ele próprio afirma não gostar, mas logra a satisfação dos clientes com pouco apuro gustativo que freqüentam seu estabelecimento diariamente. O restaurante emprega ainda os garçons Lutz (Lukas Gregorowicz) e Lucia (Anna Bederke), Zinos ainda “aluga” um pequeno galpão para o inquilino inadimplente Sócrates, que além que não pagar o aluguel, come a vontade no restaurante. Nesse contexto se desenrola um roteiro muito bem amarrado, cheio de altos e baixos que dão comicidade ao filme, como a proposta de Illias (Moritz Bleibtreu), irmão de Zinos, assaltante que cumpre pena em regime semi-aberto e precisa da ajuda do irmão de maneira a alegar que é um empregado (“de fachada”) do restaurante. Ou Shayn Weiss (Birol Ünel), chefe de cozinha contratado por Zinos quanto este fratura a coluna tentando deslocar a máquina de lavar louças que na verdade, as quebrava. Além de pendências financeiras com o governo, ainda há a insistência inconveniente de Thomas Neumann (Wotan Wilke Möhring) corretor imobiliário, ex-colega de escola de Zinos, que faz de tudo para prejudicar seus negócios, com o intuito de comercializar o prédio que abriga o restaurante que dá nome ao filme.
       Shayn dá um novo significado ao nome do estabelecimento, “Soul Kitchen” ou comida para a alma, alterando não só o cardápio, mas também o público que freqüenta o lugar. Todos ligados ao restaurante têm outros planos na vida, ambições altas demais que justificam a falta de interesse em fixar-se ali de maneira mais estável, mas ao longo do filme, todos se revelam invariavelmente dependentes do espaço, pelas relações, sobretudo sociais, que ali se estabelecem. Lutz é músico, e utiliza-se gratuitamente do espaço para os ensaios com sua banda, Sócrates passa horas, dia e meses a cuidar de um barco que, ao que tudo indica, jamais deixará aquele galpão para singrar mar algum ou qualquer água que seja. Lucia alega estar destinada a ser pintora profissional, Shayn diz ter experiência suficiente para não querer administrar um restaurante e apenas na cozinha permanecer, e em meio a tudo isso, Zinos precisa encontrar alguém para gerenciar o lugar, que de maneira alguma ele pretende vender, para mudar-se a Xangai, ao encontro da namorada Nadine (Pheline Roggan).
       Os problemas cercam o restaurante “Soul Kitchen” se misturando e confundindo com os problemas pessoais de Zinos, que por vezes parece estar em um beco sem saída. E Zinos, dança... Sim, porque assim recomendou a fisioterapeuta Anna (Dorka Gryllus), indicação da namorada Nadine, para ajudá-lo a amenizar as fortes dores de sente nas costas. A fotografia do filme é deslumbrante, tal qual a visão que Zinos tem da cidade alemã de Hamburgo, da janela de sua casa. A movimentação de câmera é de igual significância, original a ponto de acompanhar o ritmo da música que a banda de Lutz toca na primeira noite que o cardápio de Shayn é degustado com o mesmo respeito com que é preparado, e de dar um 360° nos irmãos Kazantsakis, que dançam sem se preocupar com o tempo que parece passar ao seu redor sem que os dois percebam. Por fim, “Soul Kitchen” é um filme que satisfaz a alma das pessoas que esperam mais do cinema, que ao fim do filme estão com uma gostosa sensação de bem estar, um leve sorriso no canto da boca, e um gostinho de quero mais enquanto acompanham os créditos dispostos de maneira original e criativa.  

  
Salma Nogueira.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Cão Branco

Manifesto Anti-Racista

Conforme explica Ronald Bergan: “Há duas vertentes de Racialismo no cinema: uma promove a diversidade racial; outra tem cunho racista, ainda que inconsciente”. Cão Branco (EUA, 1982) insere-se, portanto, na primeira hipótese graças a história de uma jovem atriz de cinema (Kristy McNichol) que se vê em apuros ao descobrir que o pastor alemão que adotara é, na verdade, um cão de ataque treinado para perseguir e matar negros.
Baseado no romance de Ronald F. Maxwell, o longa-metragem de Samuel Fuller dispensa firulas, mantendo-se, desta feita, focado na transmissão de sua mensagem. Neste sentido, o racismo não só é repudiado como também as raízes de seu surgimento são investigadas para, assim, viabilizar dentro e fora da tela uma estratégia de combate contra a intolerância.
Considerando que o cotidiano nos mostra que, uma vez instalados, certos preconceitos dificilmente são vencidos, a revelação de que a produção possui um final pessimista, embora realista, não estraga nenhuma surpresa, daí a necessidade de manifestos pacifistas como esse serem regularmente renovados para que as novas e vindouras gerações não sejam atingidas de modo ativo ou passivo por tal mal.
Por isso, em meio a tantos remakes descartáveis, não seria má idéia se Cão Branco fosse refilmado, isso porque, apesar de permanecer infelizmente atual quanto a sua temática, é inegável que o suspense de Fuller envelheceu no que tange sua técnica oitentista de filme B², aspecto esse que poderia ser revisado mediante a ajuda dos poderosos efeitos especiais de hoje que, por certo, confeririam uma truculência maior aos ferozes ataques do animal – afinal, esse é o tipo de produção que clama por violência explícita para tornar ainda mais latente e urgente a mensagem pretendida. Imagine como seria uma versão coreana da obra...
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1.     . ... Ismos – Para entender o Cinema. São Paulo: Globo, 2010. p. 70.
2.     Exceto, é claro, pelos belos movimentos de câmera.

Dario Façanha (texto originalmente publicado em http://www.setimacritica.blogspot.com)

 

COTAÇÃO – ۞۞۞

 

Ficha Técnica

Título Original: White Dog
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller, Curtis Hanson
Elenco: Kristy McNichol (Julie Sawyer)Karl Lewis Miller (Attacker)Karrie Emerson (Sun Bather)Terrence Beasor (Pound Driver)Tony Brubaker (Sweeper Driver)Samuel Fuller (Charlie Felton)Richard Monahan (Assistant director)Jameson Parker (Roland Gray)Vernon Weddle (Vet), Burl Ives (Mr. Carruthers), Paul Winfield (Keys)
Música: Ennio Morricone
Duração: 90 minutos
Curiosidade: no romance em que se baseia o roteiro do filme, o treinador negro que tenta “curar” o cão faz o seu trabalho condicionando-o propositalmente a atacar pessoas brancas. Já na visão do cineasta [Samuel Fuller], o comportamento e o discurso do treinador (Sr. Keys) possuem a força e a beleza da convicção de quem sabe que luta contra uma ideia”. FONTE: http://sombras-eletricas.blogspot.com/2010/04/cao-branco.html.