quarta-feira, 4 de junho de 2014

Praia do Futuro



 A PRAIA DE KARIM AÏNOUZ

A exuberante eloquência da fotografia de “Praia do Futuro” (2013) de Karim Aïnouz demonstra muito mais  que uma simples escolha de locação ou tentativa de  situar os personagens social e culturalmente. As ondas do mar, a intensa luz solar, o azul do céu e o forte vento da Praia do Futuro não são suficientes para preencher  as angústias e os anseios de Donato (Wagner Moura), o salva-vidas que perde uma vítima para o traiçoeiro mar de Fortaleza no Ceará. É nesse ponto de trágico encontro que inicia a complexa relação entre o estrangeiro Konrad (Clemens Schick) e Donato. Por outro lado, a cinzenta e fria Berlim de Konrad se mostra um possível porto de felicidade na vida de Donato. Esse contraponto, por meio da fotografia, é de uma beleza ímpar, pois sugere os estados de alma do protagonista no seu jogo de perder-se e encontrar-se  na árdua  busca por um sentido na  vida, pelo amor e pela realização pessoal.
Karim Aïnouz  nos convida  a  mergulhar nesse mar  psicológico do  personagem  Donato que é mais  denso e profundo que o mar que ele tantas  vezes enfrentou e salvou  outras  vidas. Agora, Donato tenta salvar a sua própria vida e tomar decisões, o que  parece ser tarefa  mais  difícil que o seu  próprio ofício de guarda-vidas. O sumiço do corpo do afogado cria uma atmosfera tão enigmática e misteriosa que a cena das  buscas no mar bravio lembrou-me “A Aventura” (1960) de Antonioni, que também mostrava  um desaparecimento como ponto de partida para o envolvimento de paixão entre um  casal e os desdobramentos psicológicos que se desenrolam a partir do sinistro incidente no  grupo de amigos  em uma ilha no mar Mediterrâneo. 
Mais uma vez, Karim Aïnouz explora com maestria a complexidade das relações de afeto entre as pessoas. Se em “Abismo Prateado” (2011) acompanhamos Violeta (Alessandra Negrini) em sua dor de amor gerada pelo súbito abandono do marido, em  “Praia do Futuro” há um triângulo amoroso não convencional que envolve o  irmão Ayrton (Jesuíta Barbosa) que é abandonado e esquecido ainda criança na isolada praia pelo irmão mais velho Donato, que decide morar na Alemanha em  companhia  de  Konrad. A difícil equação das contas que envolvem o amor fraterno de Ayrton e o amor de Donato por Konrad parecem, à primeira vista, não ter uma solução feliz. Há uma contextura de ressentimento e revolta que vão se acomodando à medida que os irmãos se reencontram, anos depois, em Berlim. Já o sentimento de Donato por Konrad não suporta o grande vazio deixado pelas referências e laços de afeto ligados às  origens do brasileiro em seu autoexílio.
É um filme sobre buscas. A busca por conhecer a si mesmo, a busca pelo outro, a busca pelo irmão-herói amado da infância, a busca pela zona de conforto almejada por todos, mas que não está em uma bela paisagem de um país tropical “onde se tem a obrigação de ser feliz” ou na possibilidade de segurança financeira e profissional num país frio e cinzento do primeiro mundo. “Ouvi dizer que no Brasil todas as pessoas são felizes!” – retruca a atendente do pub alemão onde Donato se embebeda.
O filme causou um burburinho desnecessário no Festival de Berlim, nas redes sociais e na mídia aberta por conta  das  cenas  de sexo e  nudez  entre os  dois  protagonistas.  Recentemente, uma rede de cinemas alertava, carimbando nos ingressos a palavra “AVISADO”, caso os  espectadores reclamassem do teor homossexual dos  personagens. Definitivamente “Praia do Futuro” não é um “filme gay”. É um filme sobre a nossa frágil e complexa humanidade. Na sessão em que estive, perdi a conta de tanta gente que abandonou o filme logo nos primeiros 25 minutos  talvez pelo desconforto diante das  referidas cenas. Também pude perceber a reação preconceituosa da plateia com as cenas de sexo. Havia muitos jovens na sala rindo e debochando das atuações de Wagner Moura e Clemens Schick. Acredito que eles entraram no cinema para ver se o “Capitão Nascimento” ressuscitava ou para ver o ator das novelas. Eles não foram ver o ator em seu criativo e desafiador ofício de fazer mais um personagem. Para esse público restam as neochanchadas de gosto duvidoso do atual cinema brasileiro com suas mesmas historinhas cada vez mais rasas e sem conteúdo.
De fato, a praia de Karim Aïnouz não pode e nem deve ser frequentada por qualquer um. Não  por  ser  uma praia  perigosa de ondas grandes. A praia de Karim exige  um  pouco mais de inteligência ou apenas  legitima  curiosidade  dos  seus frequentadores. A praia de Karim Aïnouz  ainda assim está com livre acesso a todos. Bom mergulho!

Elias Neves (texto originalmente publicado em http://www.eliasneves.blogspot.com)