sábado, 23 de novembro de 2013

Amor Pleno

O ÉDEN REVISITADO DE MALICK


 Como fã de Terrence Malick que  sou, fica difícil comentar sobre seu “Amor Pleno” (To the Wonder/EUA, 2012) sob pena de parecer indulgente demais, porém o que me tranquiliza  é que o diretor de filmes como "Terra de Ninguém"(1973), "Cinzas no Paraíso" (1978) e "A Árvore da  Vida" (2011)  nunca foi  uma  unanimidade do cinema. Neste “Amor  Pleno”, Malick  mostra sua visão muito pessoal (e com toque  autobiográfico) sobre o amor e suas  contradições e tenta esmiuçar o  significado dele através de seus personagens.
 Se no anterior “A Árvore da  Vida”, Terrence Malick também discorreu sobre  o tema amor e  perda,  neste seu “to the wonder” -  numa  tradução  livre algo  como “até  a  maravilha”- , ele volta ao  assunto e propõe uma releitura do Éden mas sem  cair  no óbvio. Nos  primeiros minutos  do  filme ainda  sentimos a  mesma atmosfera da sua “árvore”. É inevitável o aparente dejá vu no espectador, porém Malick não se repete, pelo contrário nos surpreende com o dilema do casal protagonista e do padre em conflito com a própria fé.
 Os  enamorados passeiam por lugares de paisagens oníricas e de beleza  ímpar. Parecem onipresentes através dos sucessivos  takes  rápidos e com edição ágil. Não é casual a escolha  do Monte  Saint-Michel como locação - a construção milenar, lugar-símbolo  da cultura cristã ocidental erguido em homenagem ao arcanjo Miguel. A belíssima  trilha  sonora (com temas de compositores clássicos consagrados) embala o  paraíso  amoroso  dos  personagens reforçando a ideia de um jardim de delícias para  o casal Neil (Ben  Affleck) e Marina (Olga Kurylenko) que  se conhecem em Paris, ponto de partida  do amor entre ambos. No entanto, esse mesmo amor é  colocado  à  prova com a convivência e as contingencias  da  vida a dois. A dúvida e a insegurança de ser estrangeira no país do companheiro fragilizam a relação entre Marina e Neil. Paralelamente, o conflito de convicções do padre Quintana (Javier Barden) expressa a sua busca  pelo amor divino em meio à miséria humana e social .Suas  boas obras e o exercício de  misericórdia parecem insuficientes como demonstração de sua fé em Deus.  É nesse contexto que o amor  divino e o amor humano são  colocados como   discussão principal do filme. 
 Interessante  também notar  a presença de  elementos que remetem à narrativa bíblica do pecado original: a outsider Anna (Romina Mondello) surge de repente na história  como a voz  astuciosa  que incita Marina a provar mais da liberdade, do  sonho e do prazer de ser  o que  quiser, logo  as  consequências  são desastrosas para esta. A própria caracterização do pecado da luxúria denota a ausência do belo. A natureza se  degrada, o domo celeste  que envolve o mundo perfeito quebra e se desfaz como no Éden. Todavia, a solução para o conflito  ocorre   através do perdão  como forma de redenção para que o mundo  e a ordem se restabeleçam  –  aspecto recorrente nos roteiros de Malick. 
                            
É  inegável  que o filme dialoga com alguns trechos bíblicos e em consequência disso a  abordagem de Terrence Malick sobre o amor corre o risco de ser equivocadamente taxada de limitada pelo seu forte teor  cristão  e  ocidental. A temática é universal, atinge a  todos independente  de religião ou da falta dela. Não se esgota e deixa  margem  para outras reflexões. Cinema espiritual ou  metafísico? Na  verdade o amor  pleno de Malick não é apenas um  “filme cabeça” por  assim  dizer, vai muito mais além. É  um filme  para  ser  sentido e visto com os  olhos  do  coração e não somente  com a  razão.
 
 
Elias Neves (texto originalmente publicado em http://www.eliasneves.blogspot.com)

O Som ao Redor

Estado Violência
Intrigante é um adjetivo que bem se adequa a O Som ao Redor (Brasil, 2012). Em sua estreia na direção de longas Kleber Mendonça Filho assina uma história que não se encaixa no formato clássico da narrativa fílmica, tendo em vista, sobretudo, a importância dada ao tempo morto em sua mise-en-scène, o que não quer dizer, porém, que o filme se preste a assumir uma toada contemplativa e/ou silenciosa nos moldes firmados por Antonioni e Bergman, por exemplo.
Na verdade O Som ao Redor se vale de um caprichado trabalho de montagem para arquitetar num crescendo a sensação de que uma tragédia está prestes a ocorrer, o que, frise-se, visa não criar espaço para um clímax cinematográfico – até porque seu desfecho, tal qual a vida real, é deliberadamente anticlimático – e sim lembrar o público da ininterrupta sensação de insegurança experimentada pela classe média brasileira para a qual a obra tanto volta seu olhar. Por seu turno, como o próprio título sugere, a banda sonora possui papel de destaque na medida em que, através de ruídos diversos, invade os lares e cotidianos dos personagens como que a ‘ilustrar’ o medo que não mais é barrado pelas grades e portões das casas e prédios.
Uma vez esclarecido que a distinção de classes de nossa sociedade é fruto de um processo opressor de colonização, o drama direciona seu foco, como já dito, sobre a tão pouco filmada classe média e o faz de uma maneira singular porque praticamente palpável. Neste sentido, em locações pouco adulteradas pela direção de arte, Mendonça Filho espreita de modo quase documental o modo de falar e interagir das pessoas entre seus pares e subordinados e é justamente por abordar de maneira tão franca uma parcela da nação no que tange a instabilidade de seus relacionamentos, seu habitat, comportamento e temores que a realização soa tão cúmplice¹ e também tão incômodo, afinal, como qualquer brasileiro bem sabe, estamos constantemente a mercê de inimagináveis infortúnios advindos do Estado violência no qual vivemos.
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1.     Em compreensão semelhante Roberto Guerra afirma: “O filme mantém-se sustentado em pequenos acontecimentos mundanos, que se revelam ainda mais inquietantes do que aqueles vistos numa trama comum movida à ação e reação. A vida desses personagens, sua atitudes e também apatias e tédios diante das próprias existências são os responsáveis pela dinâmica asfixiante deste filme, por que não dizer, de horror. E o assustador e temerário aqui está na familiaridade que O Som ao Redor desperta na gente” (FONTE: http://www.cineclick.com.br/criticas/ficha/filme/o-som-ao-redor/id/3112. Acesso em 21.02.12).
FICHA TÉCNICA
Direção e Roteiro: Kleber Mendonça Filho
Produção: Emilie Lesclaux
Elenco: Irma Brown, Sebastião Formiga, Gustavo Jahn, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, W. J. Solha, Lula Terra, Irandhir Santos, Waldemar José Solha, Yuri Holanda, Clébia Souza, Maria Luiza Tavares
Fotografia: Pedro Sotero                          Trilha Sonora: DJ Dolores
Estreia: 04.01.13
Duração: 131 min.
 
 Dario Façanha (texto originalmente publicado em http://www.setimacritica.blogspot.com)