quarta-feira, 4 de junho de 2014

Praia do Futuro



 A PRAIA DE KARIM AÏNOUZ

A exuberante eloquência da fotografia de “Praia do Futuro” (2013) de Karim Aïnouz demonstra muito mais  que uma simples escolha de locação ou tentativa de  situar os personagens social e culturalmente. As ondas do mar, a intensa luz solar, o azul do céu e o forte vento da Praia do Futuro não são suficientes para preencher  as angústias e os anseios de Donato (Wagner Moura), o salva-vidas que perde uma vítima para o traiçoeiro mar de Fortaleza no Ceará. É nesse ponto de trágico encontro que inicia a complexa relação entre o estrangeiro Konrad (Clemens Schick) e Donato. Por outro lado, a cinzenta e fria Berlim de Konrad se mostra um possível porto de felicidade na vida de Donato. Esse contraponto, por meio da fotografia, é de uma beleza ímpar, pois sugere os estados de alma do protagonista no seu jogo de perder-se e encontrar-se  na árdua  busca por um sentido na  vida, pelo amor e pela realização pessoal.
Karim Aïnouz  nos convida  a  mergulhar nesse mar  psicológico do  personagem  Donato que é mais  denso e profundo que o mar que ele tantas  vezes enfrentou e salvou  outras  vidas. Agora, Donato tenta salvar a sua própria vida e tomar decisões, o que  parece ser tarefa  mais  difícil que o seu  próprio ofício de guarda-vidas. O sumiço do corpo do afogado cria uma atmosfera tão enigmática e misteriosa que a cena das  buscas no mar bravio lembrou-me “A Aventura” (1960) de Antonioni, que também mostrava  um desaparecimento como ponto de partida para o envolvimento de paixão entre um  casal e os desdobramentos psicológicos que se desenrolam a partir do sinistro incidente no  grupo de amigos  em uma ilha no mar Mediterrâneo. 
Mais uma vez, Karim Aïnouz explora com maestria a complexidade das relações de afeto entre as pessoas. Se em “Abismo Prateado” (2011) acompanhamos Violeta (Alessandra Negrini) em sua dor de amor gerada pelo súbito abandono do marido, em  “Praia do Futuro” há um triângulo amoroso não convencional que envolve o  irmão Ayrton (Jesuíta Barbosa) que é abandonado e esquecido ainda criança na isolada praia pelo irmão mais velho Donato, que decide morar na Alemanha em  companhia  de  Konrad. A difícil equação das contas que envolvem o amor fraterno de Ayrton e o amor de Donato por Konrad parecem, à primeira vista, não ter uma solução feliz. Há uma contextura de ressentimento e revolta que vão se acomodando à medida que os irmãos se reencontram, anos depois, em Berlim. Já o sentimento de Donato por Konrad não suporta o grande vazio deixado pelas referências e laços de afeto ligados às  origens do brasileiro em seu autoexílio.
É um filme sobre buscas. A busca por conhecer a si mesmo, a busca pelo outro, a busca pelo irmão-herói amado da infância, a busca pela zona de conforto almejada por todos, mas que não está em uma bela paisagem de um país tropical “onde se tem a obrigação de ser feliz” ou na possibilidade de segurança financeira e profissional num país frio e cinzento do primeiro mundo. “Ouvi dizer que no Brasil todas as pessoas são felizes!” – retruca a atendente do pub alemão onde Donato se embebeda.
O filme causou um burburinho desnecessário no Festival de Berlim, nas redes sociais e na mídia aberta por conta  das  cenas  de sexo e  nudez  entre os  dois  protagonistas.  Recentemente, uma rede de cinemas alertava, carimbando nos ingressos a palavra “AVISADO”, caso os  espectadores reclamassem do teor homossexual dos  personagens. Definitivamente “Praia do Futuro” não é um “filme gay”. É um filme sobre a nossa frágil e complexa humanidade. Na sessão em que estive, perdi a conta de tanta gente que abandonou o filme logo nos primeiros 25 minutos  talvez pelo desconforto diante das  referidas cenas. Também pude perceber a reação preconceituosa da plateia com as cenas de sexo. Havia muitos jovens na sala rindo e debochando das atuações de Wagner Moura e Clemens Schick. Acredito que eles entraram no cinema para ver se o “Capitão Nascimento” ressuscitava ou para ver o ator das novelas. Eles não foram ver o ator em seu criativo e desafiador ofício de fazer mais um personagem. Para esse público restam as neochanchadas de gosto duvidoso do atual cinema brasileiro com suas mesmas historinhas cada vez mais rasas e sem conteúdo.
De fato, a praia de Karim Aïnouz não pode e nem deve ser frequentada por qualquer um. Não  por  ser  uma praia  perigosa de ondas grandes. A praia de Karim exige  um  pouco mais de inteligência ou apenas  legitima  curiosidade  dos  seus frequentadores. A praia de Karim Aïnouz  ainda assim está com livre acesso a todos. Bom mergulho!

Elias Neves (texto originalmente publicado em http://www.eliasneves.blogspot.com)

quinta-feira, 6 de março de 2014

Azul é a Cor Mais Quente

Exercício de Imersão
Filmes voltados a realizar anatomias de relacionamentos amorosos não são novidades. Nos últimos anos, por exemplo, várias vertentes da temática foram lançadas, a saber:
·      Separados Pelo Casamento¹ (EUA, 2006) tratou a questão dentro do formato da comédia romântica, ou seja, de maneira leve e bem humorada;
·      Namorados Para Sempre² (EUA, 2011) – ao contrário – mergulhou fundo na melancolia ao expor com notável veracidade o processo de formação e degradação de uma relação a dois;
·      Ela (EUA, 2013), através de uma inspirada metáfora sobre o quadro de isolamento, solidão a que estamos destinados, ilustrou com precisão a etapa em que determinado elemento do casal evolui e cresce ao ponto de não mais se sentir satisfeito por quem o ladeia até então.
Dentro deste contexto, Azul é a Cor Mais Quente (França, 2013) se diferencia e se destaca ao acrescentar sobre a radiografia de um romance fatores extras como a descoberta (simultânea) do primeiro amor e de uma sexualidade distinta porque homossexual. Tais revelações, aliás, constituem a tônica responsável por tornar a protagonista do longa-metragem tão fascinante, afinal, o que se vê na tela é o amadurecimento e o definhamento não só de uma união mas sobretudo de uma pessoa.
                   Assim, entre seus pares de mesma idade, Adèle revela indiscutível superioridade intelectual, ao passo que em casa mais parece a garotinha crescida dos pais que ainda mastiga de boca aberta e dorme de jeito desengonçado. Em seu íntimo, porém, uma insatisfação adulta lhe assusta: por mais que se entregue a garotos, falta a a adolescente algo que ela suspeita saber. Adiante, ao adentrar num mundo novo no qual todos são mais velhos, Adèle assume sem qualquer receio sua inexperiência e se torna, em contrapartida, mais comedida do que antes ao emitir respostas e opiniões invariavelmente cômicas que expõem tanto sua falta de conhecimento sobre as coisas do mundo quanto o nervosismo ante aquilo que para ela se descortina. Neste passo, a medida em que vai se entregando de corpo e alma para sua amada, Adèle se transforma em definitivo numa mulher, alguém que agora faz as vezes de dona de casa, de anfitriã dos amigos daquela e que também exerce um ofício remunerado ao longo do dia.
Entretanto, como nada na vida é perfeito, resta claro que as escolhas de Adèle a isolaram daqueles com quem antes convivia. Seus pais não são mais vistos, as antigas amigas de colégio a rechaçaram ante sua homossexualidade, daí que para ela o mundo passa a girar em torno de seu par Emma. Esta, contudo, experimenta um período profissional promissor e o agarra com unhas e dentes, deixando, por conseguinte, de dar a mesma atenção de outrora para Adèle que, insegura, sucumbe face a carência e, num misto ainda de inexperiência quanto de desespero e dúvida, percebe o quanto sua opção sexual não é estanque e sim volátil. Tal como ocorre com Eva após a prática do ato proibido, o Éden no qual vivia Adèle desmorona por completo, momento em que ela se torna adulta de uma vez por todas e passa a ser apenas uma sombra da mulher exuberante que um dia fora³.
Tantas camadas e emoções, vale dizer, são alcançadas graças, principalmente, a duas pessoas:  
·   Adèle Exarchopoulos: atriz que acumula não só uma beleza estonteante e despudorada quanto um incontestável e imenso talento dramático. Com efeito, Adèle – cujo prenome semelhante acaba, de forma curiosa, por confundi-la com sua própria personagem – rapta para si toda e qualquer atenção com um simples olhar ou movimento dos lábios. Não a toa, segundo o jornalista Rafael Nardini:
A atriz carrega a marca indelével das mulheres que sabem o quanto são maravilhosas. É aquela estirpe rara, capaz de sugar nossa vida apenas com um olhar. [...] fixe-se apenas em seus olhos. Pronto. Você está condenado a admirá-la para todo o sempre.
    Eis uma revelação como há tempos o cinema não via...
·   Abdellatif Kechiche: responsável por porporcionar ao espectador um exercício de imersão na trama e na vida das personagens, daí ser possível testemunhar com mais de um sentido o que aquelas garotas comem, bebem, fazem e sentem. Para tanto, o cineasta utiliza, numa quase intermitência, closes e planos detalhes – aspecto esse em que, frise-se, demonstra inegável generosidade e admiração para com suas atrizes e seus dotes físicos, no que se ressalta Adèle Exarchopoulos e sua boca de compreensível apelo fetichista. Acerca de seu modus operandi, Kechiche assim esclareceu durante o último festival de Cannes:
Os closes são mais expressivos e emocionantes e me permitem capturar detalhes das expressões que embora vistos, não são percebidos na vida real. [...] O close te força a estar tão próximo da verdade quanto possível. Numa tomada mais de longe, alguém pode fingir que está comendo. Mas, se você fizer um close da boca de alguém que come com apetite, o ator ou atriz não pode fingir.
E é justamente em razão do interesse de Kechiche em conectar a experiência cinematográfica o mais próximo possível da realidade que as cenas de sexo se mostram tão imprescindíveis ao longa-metragem. Ao contrário do que muitos defendem, não se trata de uma prática voyeurística do cineasta, mas sim da ilustração tal como é de algo comum em qualquer relacionamento: o sexo, seja na duração do ato, seja na profusão de toques, carícias e posições. Palmas, portanto, para Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux que não só compraram a ideia do diretor como se entregaram sem amarras uma a outra proporcionando as mais belas, excitantes e verdadeiras sequências de sexo já vistas no cinema. Neste contexto, cada cheiro, tapa, arranhão na pele e gemido são provados pela plateia que junto com a câmera se transforma quase que num terceiro elemento presente na cama.
Dito isso, pobres daqueles que se sentem incomodados com o teor erótico da produção, pois não compreendem nada de sua proposta nem percebem o porquê de essa ser “A primeira grande história de amor do século XXI.
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1.    Leia mais sobre Separados Pelo Casamento em http://setimacritica.blogspot.com.br/2010/09/separados-pelo-casamento.html.
2.    Leia mais sobre Namorados Para Sempre em  http://setimacritica.blogspot.com.br/2011/06/namorados-para-sempre.html.
3.    Neste sentido, ao se manifestar em entrevista sobre o processo longo e cronológico de filmagens, Adèle Exarchopoulos  afirmou: “eu estava tão exausta que eu acho que as emoções vieram de uma forma mais livre. E não tinha maquiador, stylist ou figurinista. De repente você consegue observar que os rostos foram ficando mais marcadas (de cansaço). Nós filmamos cronologicamente, e isso ajudou porque eu amadureci com as experiências que minha personagem teve” (FONTE: http://venenodebilheteria.wordpress.com/2013/10/05/a-polemica-de-la-vie-dadele-em-5-momentos/. Acesso em 02.03.14).
4.    Bom Dia, Adéle Exarchopoulos in http://papodehomem.com.br/bom-dia-adele-exarchopoulos/. Acesso em 28.02.14.
5.    Revista Preview. Ano 5. ed. 50. São Paulo: Sampa, Novembro de 2013. p. 57.
6.    Andrew O’Heir in www.salon.com.
Ficha Técnica
Título Original: La Vie D’Adèle
Direção: Abdellatif Kechiche
Roteiro: Abdellatif Kechiche, Ghalia Lacroix
Elenco: Adèle Exarchopoulos, Léa Seydoux, Aurélien Recoing, Catherine Salée, Alma Jodorowsky, Anne Loiret, Salim Kechiouche, Mona Walravens
Fotografia: Sofian El Fani
Edição: Ghalia Lacroix, Albertine Lastera, Jean-Marie Lengelle, Camille Toubkis
Estreia no Brasil: 06.12.2013                                  Estreia Mundial: 09.10.2013
Duração: 179 min.
 
 Dario Façanha (texto originalmente publicado em http://www.setimacritica.blogspot.com)

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Ninfomaníaca - Volume I

UM ESTUDO DE CASO

Lars Von Trier é  um  dos poucos  diretores  atualmente que  ainda  mantém  o vigor e o rigor  nos  seus trabalhos  conseguindo surpreender até seus  admiradores, digamos  assim, mais  iniciados.  Tem no  currículo filmes  importantes como “Europa” (1991),“Dançando no Escuro” (2000), “Anticristo” (2007) e “Melancolia” (2011).  Colecionador de  polêmicas,   reconhecido pelo radicalismo  e a difícil  convivência no set de filmagens, o enfant terrible é um mestre quando o assunto é cinema. Foi um dos mentores do  movimento  DOGMA 95, e depois de    romper  com as  regras do  manifesto,  seguiu  fazendo    um cinema que tem a sua  marca própria.
Lars  retorna ao centro  das  atenções com seu perturbador “NINF( )MANÍACA - VOLUME I”(2013), uma espécie de estudo  de  caso  sobre uma  mulher  que descobre sua  sexualidade precocemente e envereda  pela  compulsão ao  sexo. O  título por si  só  já  é  um chamariz aos  desavisados que, sem conhecer o mínimo sobre o diretor Lars e sua  obra,  vão  em busca de sexo  explícito  gratuito próprio dos  filmes pornôs. Em NINF( )MANÍACA existe o erotismo e a sexualidade no sentido mais sério a ser abordado e nenhuma pornografia própria do  gênero de filmes do tipo. Desse modo, somos  convidados a participar do divã proposto por  Lars Von Trier  com o Sr. Seligman (Stellan Skarsgard) e  sua  “paciente” Joe (Charlotte  Gainsbourg) - a analogia  é  pertinente  pois  a construção  cenográfica remete a  essa câmara de atmosfera psicológica em que somos imersos. Uma solução narrativa inteligente do  diretor  para  nos prender atentamente  aos  relatos de Joe.
 
Partindo  de metáforas e imagens por  vezes poéticas,  passando  por  cenas um tanto  cruéis  e outras   pouco confortáveis, o  sexo é tratado de  forma densa e com tamanha  profundidade como foi em “SHAME” (2011) de Steve MacQueen que mostrou o  personagem Brandon  (Michel Fassbender) em estágio de equivalente  obsessão sexual. Ambos  personagens   vêem  o sexo  como  forma  de poder sobre  os(as)  parceiros(as) inicialmente, mas  depois  acabam  sucumbindo ao vício da  satiríase  e  da  ninfomania.
 
Tema tabu  por excelência, difícil  e arriscado  de ser  explorado  no cinema,  Lars  consegue  até arrancar alguns risos (nervosos) com seu  humor  sutil e por vezes  prosaico – o que  não compromete o  conteúdo do  filme.  Entretanto,  ele      provoca  a platéia através  de uma  espécie de voyeurismo psicológico: adentramos na  história  da vida  sexual de  Joe e essa sexualidade  tão super exposta é  mais  subjetiva e multiforme  do que  se imagina.  Joe é  a prova dessa complexidade  através  de cada  experiência  narrada. Fica para o espectador a difícil tarefa de julgar se Joe é  de  fato  um ser  humano  ruim sem amor próprio  ou vítima de uma psicopatologia ou as duas coisas.
 O filme vai  crescendo  à  medida  que   Joe, sem qualquer pudor,  apresenta seu particular  universo   deixando pistas de uma vida marcada por conflitos pessoais e familiares . Joe  é  como  um  estudo  de  caso, uma referência e não  segue  um  padrão. Seus  parceiros e os implicados  em sua  rede de  relações,  sejam sexuais ou não, são designados por  iniciais (Srta. B, Sr. e  Sra. H) o que    um  tom  de   relato de literatura  médica para cada  capítulo do livro de Lars. Os limites  entre  prazer  e  morte são  bem  estreitos  na vida  da personagem  - como não lembrar  da obsessiva  busca  pelo  prazer  em “O Império dos  Sentidos” (1976) de Nagisa  Oshima? Fato bem ilustrado na  cena em que Joe se defronta com a morte. Patologia  sexual ou reação  involuntária  das emoções? Lars  nos  estimula a  refletir numa  atitude que  toma o lugar de  qualquer   reação (in)consciente comum  da platéia  diante  da  nudez e  da  pluralidade de práticas sexuais  colocadas  na tela. Nos  damos  conta de que a sexualidade  configura  uma  identidade tão pessoal  e intransferível  como  as  impressões  digitais que  cada  um  traz consigo.
 
Interessante também  atentar para algumas escolhas  estéticas  de Trier para contar sua  história. Ele  lança  mão  de   elementos  visuais (gráficos, pictóricos e imagéticos)  e  intertextuais (música, matemática, filosofia e literatura) para enriquecer o diálogo  com  a platéia sobre um assunto ainda considerado  tão proibido, aliás recursos  muito explorados também  por  Peter Greenaway   em seus  filmes.

Se o VOLUME I  do  “livro” de Lars  Von Trier é instigante e muito  bem  escrito filmica  e retoricamente, ficamos ávidos  pelo VOLUME II que se avizinha por  meados  de  março nos  cinemas  brasileiros. Lars  Von Trier é um dos  poucos  realizadores  que  pode fazer o que  deseja sem  preocupar-se  com  gregos e  troianos. Sem dúvida, NINF( )MANÍACA – VOLUME I  já  é  um dos  melhores  filmes  de 2014.
 
 Elias Neves (texto originalmente publicado em http://www.eliasneves.blogspot.com)

sábado, 23 de novembro de 2013

Amor Pleno

O ÉDEN REVISITADO DE MALICK


 Como fã de Terrence Malick que  sou, fica difícil comentar sobre seu “Amor Pleno” (To the Wonder/EUA, 2012) sob pena de parecer indulgente demais, porém o que me tranquiliza  é que o diretor de filmes como "Terra de Ninguém"(1973), "Cinzas no Paraíso" (1978) e "A Árvore da  Vida" (2011)  nunca foi  uma  unanimidade do cinema. Neste “Amor  Pleno”, Malick  mostra sua visão muito pessoal (e com toque  autobiográfico) sobre o amor e suas  contradições e tenta esmiuçar o  significado dele através de seus personagens.
 Se no anterior “A Árvore da  Vida”, Terrence Malick também discorreu sobre  o tema amor e  perda,  neste seu “to the wonder” -  numa  tradução  livre algo  como “até  a  maravilha”- , ele volta ao  assunto e propõe uma releitura do Éden mas sem  cair  no óbvio. Nos  primeiros minutos  do  filme ainda  sentimos a  mesma atmosfera da sua “árvore”. É inevitável o aparente dejá vu no espectador, porém Malick não se repete, pelo contrário nos surpreende com o dilema do casal protagonista e do padre em conflito com a própria fé.
 Os  enamorados passeiam por lugares de paisagens oníricas e de beleza  ímpar. Parecem onipresentes através dos sucessivos  takes  rápidos e com edição ágil. Não é casual a escolha  do Monte  Saint-Michel como locação - a construção milenar, lugar-símbolo  da cultura cristã ocidental erguido em homenagem ao arcanjo Miguel. A belíssima  trilha  sonora (com temas de compositores clássicos consagrados) embala o  paraíso  amoroso  dos  personagens reforçando a ideia de um jardim de delícias para  o casal Neil (Ben  Affleck) e Marina (Olga Kurylenko) que  se conhecem em Paris, ponto de partida  do amor entre ambos. No entanto, esse mesmo amor é  colocado  à  prova com a convivência e as contingencias  da  vida a dois. A dúvida e a insegurança de ser estrangeira no país do companheiro fragilizam a relação entre Marina e Neil. Paralelamente, o conflito de convicções do padre Quintana (Javier Barden) expressa a sua busca  pelo amor divino em meio à miséria humana e social .Suas  boas obras e o exercício de  misericórdia parecem insuficientes como demonstração de sua fé em Deus.  É nesse contexto que o amor  divino e o amor humano são  colocados como   discussão principal do filme. 
 Interessante  também notar  a presença de  elementos que remetem à narrativa bíblica do pecado original: a outsider Anna (Romina Mondello) surge de repente na história  como a voz  astuciosa  que incita Marina a provar mais da liberdade, do  sonho e do prazer de ser  o que  quiser, logo  as  consequências  são desastrosas para esta. A própria caracterização do pecado da luxúria denota a ausência do belo. A natureza se  degrada, o domo celeste  que envolve o mundo perfeito quebra e se desfaz como no Éden. Todavia, a solução para o conflito  ocorre   através do perdão  como forma de redenção para que o mundo  e a ordem se restabeleçam  –  aspecto recorrente nos roteiros de Malick. 
                            
É  inegável  que o filme dialoga com alguns trechos bíblicos e em consequência disso a  abordagem de Terrence Malick sobre o amor corre o risco de ser equivocadamente taxada de limitada pelo seu forte teor  cristão  e  ocidental. A temática é universal, atinge a  todos independente  de religião ou da falta dela. Não se esgota e deixa  margem  para outras reflexões. Cinema espiritual ou  metafísico? Na  verdade o amor  pleno de Malick não é apenas um  “filme cabeça” por  assim  dizer, vai muito mais além. É  um filme  para  ser  sentido e visto com os  olhos  do  coração e não somente  com a  razão.
 
 
Elias Neves (texto originalmente publicado em http://www.eliasneves.blogspot.com)

O Som ao Redor

Estado Violência
Intrigante é um adjetivo que bem se adequa a O Som ao Redor (Brasil, 2012). Em sua estreia na direção de longas Kleber Mendonça Filho assina uma história que não se encaixa no formato clássico da narrativa fílmica, tendo em vista, sobretudo, a importância dada ao tempo morto em sua mise-en-scène, o que não quer dizer, porém, que o filme se preste a assumir uma toada contemplativa e/ou silenciosa nos moldes firmados por Antonioni e Bergman, por exemplo.
Na verdade O Som ao Redor se vale de um caprichado trabalho de montagem para arquitetar num crescendo a sensação de que uma tragédia está prestes a ocorrer, o que, frise-se, visa não criar espaço para um clímax cinematográfico – até porque seu desfecho, tal qual a vida real, é deliberadamente anticlimático – e sim lembrar o público da ininterrupta sensação de insegurança experimentada pela classe média brasileira para a qual a obra tanto volta seu olhar. Por seu turno, como o próprio título sugere, a banda sonora possui papel de destaque na medida em que, através de ruídos diversos, invade os lares e cotidianos dos personagens como que a ‘ilustrar’ o medo que não mais é barrado pelas grades e portões das casas e prédios.
Uma vez esclarecido que a distinção de classes de nossa sociedade é fruto de um processo opressor de colonização, o drama direciona seu foco, como já dito, sobre a tão pouco filmada classe média e o faz de uma maneira singular porque praticamente palpável. Neste sentido, em locações pouco adulteradas pela direção de arte, Mendonça Filho espreita de modo quase documental o modo de falar e interagir das pessoas entre seus pares e subordinados e é justamente por abordar de maneira tão franca uma parcela da nação no que tange a instabilidade de seus relacionamentos, seu habitat, comportamento e temores que a realização soa tão cúmplice¹ e também tão incômodo, afinal, como qualquer brasileiro bem sabe, estamos constantemente a mercê de inimagináveis infortúnios advindos do Estado violência no qual vivemos.
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1.     Em compreensão semelhante Roberto Guerra afirma: “O filme mantém-se sustentado em pequenos acontecimentos mundanos, que se revelam ainda mais inquietantes do que aqueles vistos numa trama comum movida à ação e reação. A vida desses personagens, sua atitudes e também apatias e tédios diante das próprias existências são os responsáveis pela dinâmica asfixiante deste filme, por que não dizer, de horror. E o assustador e temerário aqui está na familiaridade que O Som ao Redor desperta na gente” (FONTE: http://www.cineclick.com.br/criticas/ficha/filme/o-som-ao-redor/id/3112. Acesso em 21.02.12).
FICHA TÉCNICA
Direção e Roteiro: Kleber Mendonça Filho
Produção: Emilie Lesclaux
Elenco: Irma Brown, Sebastião Formiga, Gustavo Jahn, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, W. J. Solha, Lula Terra, Irandhir Santos, Waldemar José Solha, Yuri Holanda, Clébia Souza, Maria Luiza Tavares
Fotografia: Pedro Sotero                          Trilha Sonora: DJ Dolores
Estreia: 04.01.13
Duração: 131 min.
 
 Dario Façanha (texto originalmente publicado em http://www.setimacritica.blogspot.com)

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Elena

RECONSTRUINDO ELENA

Assisti  ao  filme  “ELENA” (2012), da diretora  Petra  Costa completamente  “no escuro”,  desarmado e sem quaisquer  expectativas. Não li nem a sinopse antes. As únicas referências  que eu  tinha  era o instigante cartaz com a bela imagem da mulher de vestido florido sob as  águas esverdeadas, os comentários dos  internautas pelas  redes  sociais de que havia uma  forte carga poética e ganhara prêmios no   Festival de  Brasília.
ELENA é  muito  mais  que um  documentário biográfico. É uma  declaração de  amor e talvez uma  demonstração pessoal de como lidar  com a dor  da  saudade. Sim, saudade, pois Petra  Costa, muito  habilmente, não nos passa apenas a ideia de uma Elena que “foi embora” e nunca  mais  retorna. Pelo contrário,  o olhar  da irmã caçula Petra em relação a sua irmã mais  velha vai  amadurecendo e traz de volta a figura desta sua quase heroica  irmã Elena que  tinha  o  sonho de tornar-se  atriz. Sonho  perseguido e alcançado como nos é mostrado através  de  fragmentos de cartas-áudio gravadas em K-7, vídeos caseiros e registros de apresentações do “Grupo Teatral  Boi  Voador” do qual Elena  fez  parte.

 Nesse ritmo, Petra  constrói o grande mosaico de uma  história de vida. Sua tarefa parece desconfortável e árdua,  porém compensadora no plano das  emoções: Reconstruir Elena para  que  sua  memória não se perca entre as tragédias da  vida pessoal e as encenadas pela jovem atriz  nos palcos do teatro. Essa coragem de expor  a  fundo suas  próprias inquietações implica em reacender uma dor, tocar  nas  feridas da alma,  confrontar-se  com os porquês de uma  ausência imposta e sem explicações  convincentes. Toda  essa pluralidade de sentimentos é narrada e  traduzida com grande sensibilidade e poesia que  emocionam e ao mesmo tempo nos arremessam para a  atmosfera da alegria-triste que é a saudade  de ter convivido com alguém muito amado  e  depois ter que seguir a vida às custas  da lembrança – essa palavra  que  a gente aprendeu na escola a classificar como substantivo abstrato  mas  que  dói de  tão concreto e pesado que  é.
 
 A relação entre as irmãs foi  tão  intensa  e simbiótica – a narradora  Petra faz  questão de conjugar o verbo  no presente como se Elena ainda  estivesse neste tempo: Elena é, Elena faz, Elena está... – que suas  personas se confundem em determinado momento da narrativa. Intencional ou não, o recurso da linguagem poética aliada a  excelente edição causa-nos  essa sensação confortante e esteticamente bela.

Revisistar os lugares que Elena viveu e percorrer os mesmos caminhos que ela andou é  outra atitude de coragem  de Petra e sua mãe Li An. Tal ação ultrapassa o mero tom documental.É  como percorrer uma  via crucis dessa paixão de/por  Elena. E o ponto alto desses lugares ora reais, ora virtuais é a representação onírica das mulheres vestidas com roupas floridas submersas no riacho e levadas ao sabor da corrente. Interpretações  à  parte, essa imagem que remete à Ofélia afogada e outras  possíveis leituras  é a arte  como um lenitivo para a dor da saudade. Assim, Petra coloca sua amada Elena no status de arte.

Apaixonantemente belo e ousadamente bem feito,  Petra  Costa  mostra  que  o documentário não é  um  gênero chato ou  preso à  formulas como  muitos ingenuamente acham. Elena é um filme  para  ser  visto e revisto.
 
 
Elias Neves (texto originalmente publicado em http://www.eliasneves.blogspot.com)