sábado, 22 de fevereiro de 2014

Ninfomaníaca - Volume I

UM ESTUDO DE CASO

Lars Von Trier é  um  dos poucos  diretores  atualmente que  ainda  mantém  o vigor e o rigor  nos  seus trabalhos  conseguindo surpreender até seus  admiradores, digamos  assim, mais  iniciados.  Tem no  currículo filmes  importantes como “Europa” (1991),“Dançando no Escuro” (2000), “Anticristo” (2007) e “Melancolia” (2011).  Colecionador de  polêmicas,   reconhecido pelo radicalismo  e a difícil  convivência no set de filmagens, o enfant terrible é um mestre quando o assunto é cinema. Foi um dos mentores do  movimento  DOGMA 95, e depois de    romper  com as  regras do  manifesto,  seguiu  fazendo    um cinema que tem a sua  marca própria.
Lars  retorna ao centro  das  atenções com seu perturbador “NINF( )MANÍACA - VOLUME I”(2013), uma espécie de estudo  de  caso  sobre uma  mulher  que descobre sua  sexualidade precocemente e envereda  pela  compulsão ao  sexo. O  título por si  só  já  é  um chamariz aos  desavisados que, sem conhecer o mínimo sobre o diretor Lars e sua  obra,  vão  em busca de sexo  explícito  gratuito próprio dos  filmes pornôs. Em NINF( )MANÍACA existe o erotismo e a sexualidade no sentido mais sério a ser abordado e nenhuma pornografia própria do  gênero de filmes do tipo. Desse modo, somos  convidados a participar do divã proposto por  Lars Von Trier  com o Sr. Seligman (Stellan Skarsgard) e  sua  “paciente” Joe (Charlotte  Gainsbourg) - a analogia  é  pertinente  pois  a construção  cenográfica remete a  essa câmara de atmosfera psicológica em que somos imersos. Uma solução narrativa inteligente do  diretor  para  nos prender atentamente  aos  relatos de Joe.
 
Partindo  de metáforas e imagens por  vezes poéticas,  passando  por  cenas um tanto  cruéis  e outras   pouco confortáveis, o  sexo é tratado de  forma densa e com tamanha  profundidade como foi em “SHAME” (2011) de Steve MacQueen que mostrou o  personagem Brandon  (Michel Fassbender) em estágio de equivalente  obsessão sexual. Ambos  personagens   vêem  o sexo  como  forma  de poder sobre  os(as)  parceiros(as) inicialmente, mas  depois  acabam  sucumbindo ao vício da  satiríase  e  da  ninfomania.
 
Tema tabu  por excelência, difícil  e arriscado  de ser  explorado  no cinema,  Lars  consegue  até arrancar alguns risos (nervosos) com seu  humor  sutil e por vezes  prosaico – o que  não compromete o  conteúdo do  filme.  Entretanto,  ele      provoca  a platéia através  de uma  espécie de voyeurismo psicológico: adentramos na  história  da vida  sexual de  Joe e essa sexualidade  tão super exposta é  mais  subjetiva e multiforme  do que  se imagina.  Joe é  a prova dessa complexidade  através  de cada  experiência  narrada. Fica para o espectador a difícil tarefa de julgar se Joe é  de  fato  um ser  humano  ruim sem amor próprio  ou vítima de uma psicopatologia ou as duas coisas.
 O filme vai  crescendo  à  medida  que   Joe, sem qualquer pudor,  apresenta seu particular  universo   deixando pistas de uma vida marcada por conflitos pessoais e familiares . Joe  é  como  um  estudo  de  caso, uma referência e não  segue  um  padrão. Seus  parceiros e os implicados  em sua  rede de  relações,  sejam sexuais ou não, são designados por  iniciais (Srta. B, Sr. e  Sra. H) o que    um  tom  de   relato de literatura  médica para cada  capítulo do livro de Lars. Os limites  entre  prazer  e  morte são  bem  estreitos  na vida  da personagem  - como não lembrar  da obsessiva  busca  pelo  prazer  em “O Império dos  Sentidos” (1976) de Nagisa  Oshima? Fato bem ilustrado na  cena em que Joe se defronta com a morte. Patologia  sexual ou reação  involuntária  das emoções? Lars  nos  estimula a  refletir numa  atitude que  toma o lugar de  qualquer   reação (in)consciente comum  da platéia  diante  da  nudez e  da  pluralidade de práticas sexuais  colocadas  na tela. Nos  damos  conta de que a sexualidade  configura  uma  identidade tão pessoal  e intransferível  como  as  impressões  digitais que  cada  um  traz consigo.
 
Interessante também  atentar para algumas escolhas  estéticas  de Trier para contar sua  história. Ele  lança  mão  de   elementos  visuais (gráficos, pictóricos e imagéticos)  e  intertextuais (música, matemática, filosofia e literatura) para enriquecer o diálogo  com  a platéia sobre um assunto ainda considerado  tão proibido, aliás recursos  muito explorados também  por  Peter Greenaway   em seus  filmes.

Se o VOLUME I  do  “livro” de Lars  Von Trier é instigante e muito  bem  escrito filmica  e retoricamente, ficamos ávidos  pelo VOLUME II que se avizinha por  meados  de  março nos  cinemas  brasileiros. Lars  Von Trier é um dos  poucos  realizadores  que  pode fazer o que  deseja sem  preocupar-se  com  gregos e  troianos. Sem dúvida, NINF( )MANÍACA – VOLUME I  já  é  um dos  melhores  filmes  de 2014.
 
 Elias Neves (texto originalmente publicado em http://www.eliasneves.blogspot.com)

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