sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Memórias

Metalinguístico e Autoral

“-Quem é esse cara para reescrever o final do meu filme? E desde quando esses [outros] caras estão envolvidos? O que está havendo?
-Eles são os novos chefes do estúdio.
-Como? A cada seis meses conheço novos chefes do estúdio...
-Eu também fico confusa. Mas, você sabe, a taxa de mortalidade nesse ramo é inacreditável!”

O, genial, diálogo acima transcrito oferece uma pequena mostra do tema abordado por Woody Allen em Memórias (EUA, 1980), qual seja sua relação com a indústria cinematográfica em meio a um momento da carreira no qual a comédia cedia considerável espaço ao drama.
Buscando adequar a arte a seu deprimido estado de espírito – iniciativa essa que, é claro, esbarra nos obstáculos impostos por produtores que não se conformavam com a mudança de gêneros proposta – o cineasta encarnado por Allen revê passos de sua trajetória, no que se incluem, sobretudo, os amores perdidos ao longo do caminho, para, desta feita, compreender o sentido não só do seu ofício como também da vida.
Apesar de em várias passagens evocar o imediatamente anterior Manhattan (EUA, 1979) – principalmente quando da sugestão de que pequenos e corriqueiros fatos do cotidiano são os responsáveis por mostrar a beleza que dá significado a nossas vidas – é inegável que a principal referência para a composição de Memórias é o longa-metragem 8 ½ de Fellini (Itália, 1963), o que, frise-se, não configura nenhum demérito da parte de Allen, já que este alcança um exemplar resultado ao conduzir sua obra com mão leve e recheá-la de diálogos nunca menos que perfeitos, qualidades essas que ganham ainda mais destaque por conta da bela fotografia em preto e branco que presta valiosa colaboração para as sequências que pedem certo tom surrealista e bem como pelo inteligente trabalho de direção de arte que, por exemplo, alterna os painéis que decoram o apartamento do protagonista em consonância com o humor deste.
Metalinguístico e obviamente autoral Memórias atesta uma das principais virtudes de Woody Allen: a capacidade de não se permitir iludir pela vaidade nem se deixar levar a sério – não obstante o inconteste talento reconhecido mundo afora. Consciente, portanto, de que nem tudo está sob seu controle, o diretor faz piadas, não raro, ácidas sobre si mesmo e sobre seu trabalho, mas o faz com uma despretensão que, felizmente, mantém o filme longe de qualquer toada egocêntrica ou, conforme as palavras de seu alterego Sandy Bates: “Você não pode controlar a vida (...) você só consegue controlar a arte e a masturbação; duas áreas em que sou um especialista absoluto!”.
 
Dario Façanha (texto originalmente publicado em http://www.setimacritica.blogspot.com)

COTAÇÃO: ۞۞۞۞

Ficha Técnica
Título Original: Stardust Memories
Direção:Woody Allen
Produção: Robert Greenhut
Elenco: Victoria Zussin (Mrs. Payson)J.E. Beaucaire (Jaqui Safra)Noel Behn (Doug Orkin)Roy Brocksmith (Dick Lobel) Andy Albeck (Studio Executive)Woody Allen (Sandy Bates) Leonardo Cimino (Sandy's Analyst) Robert Munk (Boy Sandy) Larry Fishman (UFO Follower)Robert Friedman (Studio Executive) Michael Gorrin (Michael Goldstein) Ostaro (Astrologer)Simon Newey (Mr. Payson) Douglas Ireland (Studio Executive) Kenny Vance (New Studio Executive) Michel Touchard (Isobel's Son) Ken Chapin (Sandy's Father) Benjamin Rayson (Dr. Paul Pearlstein)Tony Roberts (Tony)Jack Rollins (Studio Executive) John Rothman (Jack Abel) Howard Kissel (Sandy's Manager) Helen Hanft (Vivian Orkin)Jessica Harper (Daisy)Charlotte Rampling (Dorrie) Edward S. Kotkin (Edward Kotkin)Max Leavitt (Sandy's Doctor) Marvin Peisner (Ed Rich) Daniel Stern Iryn Steinfink (New Studio Executive) Anne De Salvo (Sandy's Sister) Marie-Christine Barrault (Isobel) Laraine Newman (Film Executive)Joan Neuman (Sandy's Mother) Mary Mims (Claire Schaeffer) Candy Loving (Tony's Girlfriend)Renée Lippin (Sandy's Press Agent)Vanina Holasek (Isobel's Daughter) Victoria Page (Fan in Lobby)Frances Pole (Libby) Gabrielle Strasun (Charlotte Ames) Amy Wright (Shelley)Dorothy Leon (Sandy's Cook)Louise Lasser (Sandy's Secretary) Irving Metzman (Sandy's Lawyer) Bob Maroff (Jerry Abraham)
Estreia Mundial: 1980
Duração: 88 minutos

sábado, 6 de agosto de 2011

Pequeno Dicionário Amoroso/Ilha das Flores/Saneamento Básico

                                            Diversificação

É fato que a partir do Cinema Novo a produção cinematográfica brasileira passou a ter uma temática predominante, qual seja as agruras sertanistas. Chegado o novo milênio, a estética da fome teve seu cenário alternado para as favelas e morros, passando a violência a assumir cores ainda mais vivas e expressivas.
Longe de tentar afirmar que obras envolvendo os temas supracitados sejam de inferior qualidade – até porque na maioria das vezes são justamente o contrário -, o que será aqui defendido é a diversificação de enredos e de gêneros como convite a um número maior de público e como meio de solidificação da indústria.
Nos últimos anos muitos exemplos, nesse sentido, surgiram, como é o caso de Pequeno Dicionário Amoroso, Chico Xavier e da franquia E Se Eu Fosse Você.
Dentro deste contexto, o segundo exemplo talvez não seja um excelente parâmetro de variação de gêneros por ser calcado em torno de uma platéia específica garantidora de retorno financeiro à produção. O terceiro exemplo, se por um lado configura o momento em que o cinema brasileiro e o público selam de vez as pazes - dado o imenso sucesso comercial da franquia –, por outro lado marca, também, o retorno de um assunto discutido pela crítica especializada desde a época das chanchadas, qual seja a predileção das grandes massas por produtos de discutível ou nenhuma qualidade.
Uma vez inserido no gênero comédia romântica, o primeiro exemplo, dirigido por Sandra Weneck, representa um drible nas temáticas nacionais preestabelecidas, assumindo, assim, uma postura universal que permite sua plena compreensão e apreciação em qualquer canto do planeta.
Neste diapasão, Jorge Furtado é outro cineasta cuja filmografia é formada por roteiros pouco convencionais, com tramas que dispensam uma necessária representatividade nacional.
Seu curta-metragem Ilha das Flores pode até tratar de um pedaço de chão brasileiro, porém, os problemas do local, além de não serem exclusividades tupiniquins, são mostrados com tamanho sarcasmo e ironia que a tradicional dureza da estética da fome resta rompida, cedendo lugar a risos nervosos imbuídos em mea culpa - o que, talvez, fomente no espectador um grau até maior de reflexão.
Indo além, veja-se o caso, por exemplo, de Saneamento Básico – O Filme: lançando mão de um argumento altamente inovador, o longa-metragem injeta frescor tanto sobre a metalinguagem quanto sobre a abordagem de problemas sociais. Desta feita, estão no filme, por exemplo, a atriz chinfrim que não se furta a estrelismos, bem como diálogos afirmando que ficção é coisa que não existe, tal como monstro, fantasma e futuro...
Genial em sua concepção, o filme discorre, entre tantas coisas, sobre o uso do dinheiro público e a nem sempre moral destinação que a ele é dada, mas o faz com tal leveza que conquista qualquer um facilmente, demonstrando, por conseguinte, que com criatividade e talento é possível unir a diversificação de gêneros com a discussão dos problemas pátrios sem resvalar nas fórmulas que insistem em caracterizar a produção nacional.
Desta feita, os trabalhos de Jorge Furtado, que de escapistas nada tem, deixam suas cutucadas nas entrelinhas, sendo, assim, diversões inteligentes defendidas por artistas de novelas das oito - afinal, por mais intelectualizado que seja o produto, estamos falando de uma indústria.

COTAÇÕES:
Pequeno Dicionário Amoroso - ☼☼☼
Ilha das Flores - ☼☼☼☼  
Saneamento Básico – O Filme - ☼☼☼☼

Ficha Técnica - Pequeno Dicionário Amoroso
Direção: Sandra Werneck
Duração: 91 minutos

Ficha Técnica - Ilha das Flores
Direção e Roteiro: Jorge Furtado
Direção de Arte: Fiapo Barth
Trilha original: Geraldo Flach
Narração: Paulo José
Estreia: 1989
Duração: 23 minutos
Principais Prêmios: Prêmio da Crítica no Festival de Gramado 1989; Urso de Prata para curta-metragem no 40° Festival de Berlim em 1990; Prêmio Especial do Júri e Melhor Filme do Júri Popular no 3° Festival de Clermont-Ferrand na França em 1991; "Blue Ribbon Award" no American Film and Video Festival em Nova Iorque em 1991; Melhor Filme no 7º No-Budget Kurzfilmfestival em Hamburgo, Alemanha em 1991.

Ficha Técnica - Saneamento Básico
Direção e Roteiro: Jorge Furtado
Estreia: 2007
Duração: 112 minutos

Dario Façanha (texto originalmente publicado em http://www.setimacritica.blogspot.com)

terça-feira, 2 de agosto de 2011

NANA CAYMMI, A DONA DA VOZ

Há muito que eu não assistia a um documentário tão envolvente como “Rio Sonata”, de Georges Gachot (Suíça/2010, 85 min.), em cartaz por  curta temporada no Oi Cine Estaçãoem Belém. Sim, em “curta temporada” é um jargão  que pertence aos  shows, recitais ou concertos e neste  filme cabe perfeitamente a expressão, pois vemos na tela um mosaico delicadamente bem trabalhado dos vários momentos de Nana Caymmi, desde  o início de sua  carreira até o presente. E sem dúvida, o documentário é um SHOW!



O nome Caymmi já tem  uma  força  musical definitiva, pois  é sinônimo de  boa musica brasileira no que  diz   respeito  a  letra  e melodia. A raiz  de  tudo está em Dorival Caymmi cuja bênção e dom  alcançou os  filhos Nana, Dori e Danilo - intérpretes máximos  das composições do pai e de outros  grandes gênios  da  música brasileira como Tom Jobim, Vinícius  de Morais, João Donato, Gilberto Gil, Milton Nascimento entre outros. A família Caymmi tem tradição na música e na voz e o talento de Nana deu-se por  mérito próprio, quase um fenômeno hereditário  por assim dizer na tessitura grave da voz e no timbre inconfundível fluindo num misto de suavidade e força que enleva seus ouvintes e fãs. Tudo isso é  nítido e percebido através  do  filme.


As  imagens e planos  abertos de um Rio de Janeiro encoberto de névoa e chuvoso ou até mesmo ensolarado revelam a  relação de Nana com a cidade onde  nasceu e dão ao filme a cor  e a poesia cantada por  ela em canções consagradas  como “Saveiros” e “O Bem do Mar”. 
O documentário mostra a cantora em momentos de descontração e bem à vontade. Sua vida  é a música e temos a oportunidade de ver Nana despida da aura de Diva  seja no cotidiano de seu lar ou no estúdio de gravação onde mais  parece ser  sua segunda casa. A vivência de Nana neste ofício chega a emocionar ela própria e a nós mesmos quando  relata sua  parceria com o irmão Dori.  

                        
Não poderiam faltar os depoimentos de parceiros e amigos de música e profissão, mas o que pareceu um tanto fora do lugar foi a fala da cantora Mart’nália – com um carioquês difícil de entender (quase uma outra língua!) num depoimento mais do que ingênuo. Mas a atmosfera e o tom do filme ofuscam  este desafino dentro do conjunto. 



                                                                                                                                   
                                                                                
 O repertório mostrado  no filme não contempla tudo que Nana cantou e gravou. Seriam necessários talvez boa parte das 100 horas totais de material bruto das filmagens que Georges Gachot  registrou e editou pararealização deste trabalho. Foram destacados os sucessos “Resposta ao Tempo”, tema da  minissérie “Hilda Furacão” (1997) e “Não se Esqueça de Mim”, em dueto com Erasmo Carlos. Não poderia ficar de fora “Só Louco”, de Dorival Caymmi  com Tom Jobim ao piano acompanhando Nana no registro de um encontro antológico. Como ela mesma  afirma ser uma  cantora que canta  “de tudo e  acha perigoso os  rótulos”, Nana se consolidou numa versatilidade de repertório que raramente encontramos em cantores brasileiros nos  dias de hoje. Entretanto, particularmente, senti  falta de “Só em teus Braços”, de Tom  Jobim e “Se Queres Saber”, de Peterpan. Ambas as musicas parece que só se completam na interpretação e na voz de Nana.




                                                                                                                                     
O filme não deixa de destacar a importante figura de Dorival Caymmi e é quase impossível não se comover no momento que escutamos um trecho de “Acalanto” na voz de Dorival Caymmi e Nana explica a gênese de sua carreira e de como nasceu predestinada a cantar.

Com uma câmera hábil captando imagens seja de pessoas simples,  de rostos nas  janelas, de transeuntes pelas  ruas ou sentados sob as marquises dos  prédios do Rio de Janeiro, seja nos lugares mais sofisticados como  as casas de shows e teatros temos a sensação de que  a música de Nana Caymmi alcança  a todos sem qualquer impedimento ou distinção.

“Rio Sonata” não é  apenas um documentário bem feito ou uma  breve biografia sobre Nana Caymmi, mas também é um emocionante espetáculo.




Elias Neves Gonçalves.