Fazer filmes requer dinheiro. Por isso, grandes estúdios precisam de produções de apelo popular cujo retorno financeiro seja garantido, o que, por conseguinte, acarreta o eterno embate entre a arte e o comércio.
Tal realidade, frise-se, acompanha o cinema desde seus primórdios e, especificamente durante a primeira metade do século XX, tivera em Louis B. Mayer¹ o grande entusiasta do entretenimento desengajado.
Para o executivo, críticos de cinema, por exemplo, serviam tão somente para achincalhar a produção hollywoodiana e superestimar qualquer obra feita fora dos EUA. Segundo palavras do mesmo: “Assim que se diz que o filme foi feito na Itália, algum crítico de oitenta dólares por semana escreve uma grande resenha delirante chamando-o de arte. (...) Sei o que o público quer. (...) Sentimentalismo! O que há de errado com isso? Amor! Um bom romance antiquado! (...) Isso é ruim? Isso entretém. Traz o público para a bilheteria”.²
A Glória de Um Covarde (The Red Badge of Courage, EUA, 1951) representa um exemplo desse contexto, eis que, mesmo sendo um projeto capitaneado pelo aclamado diretor John Huston, L.B. Mayer sempre fora contra sua produção por entender que um tema soturno como a Guerra Civil Americana não renderia lucro algum ao seu estúdio.
O fato é que, amaldiçoado ou não por Mayer, a obra estancou em sua fase de pós-produção por conta de reprovações manifestadas pelo público de sessões testes, o que fez o trabalho de Huston ser reeditado diversas vezes, chegando a ponto de ser inclusive providenciada a dublagem de um dos atores do filme em função de um comentário negativo advindo da platéia.
John Huston, por sua vez, considerava A Glória de Um Covarde um exemplo supremo de ironia, por ser, ao mesmo tempo, seu melhor trabalho, conforme sua própria visão, e seu maior fracasso de público.
Neste passo, enquanto produtores reviravam a obra pelo avesso na tentativa de adequá-la ao gosto das massas, Huston, reconhecendo que aquele não era mais um filme seu, pulou fora do barco para adentrar num outro chamado African Queen.
Explique-se: o cineasta havia se comprometido a dirigir o projeto Uma Aventura na África para sua própria companhia – a Horizon Pictures - local onde dispunha de total liberdade para filmar graças ao fato de seu sócio, o produtor Sam Spiegel, realizar a captação de verbas sem a colaboração de estúdios.
Assim, Huston partiu rumo à África deixando para trás A Glória de Um Covarde e seus problemas de finalização – além do salário semanal oriundo do contrato que firmara com a MGM -, para, a partir de então, dedicar-se a roteirização e direção de Uma Aventura na África.
Conhecido por suas excentricidades, Huston via nesse novo trabalho - graças ao apelo da história e de seu elenco - a possibilidade de, enfim, obter muito lucro, mas também, e principalmente, a oportunidade de caçar elefantes no continente africano e de se divertir ao lado do amigo Humprey Bogart, ator protagonista do filme, em locações exóticas como as do Congo Belga.
Todavia, se por um lado o cineasta ficara livre da sombra dos executivos, por outro fora obrigado a lidar durante as filmagens com intempéries de toda espécie, afinal, condições climáticas interferiam negativamente no nível das águas, praticamente toda a equipe técnica fora acometida de enfermidades, Katherine Hepburn, estrela do filme ao lado de Bogart, quase fora morta após uma debandada de elefantes, entre outros exemplos...
Vencidos os obstáculos, Huston retornou aos EUA quando A Glória de Um Covarde, após quase um ano de pós-produção, já havia estreado oficialmente nos cinemas. Sem jamais ter assistido a versão final do filme, Huston experimentou dentro de pouco mais de um ano uma passagem do inferno ao céu, pois enquanto o trabalho supracitado se confirmou como um retumbante fracasso de bilheteria, Uma Aventura na África, de forma totalmente diversa, além de se confirmar como seu maior sucesso de bilheteria ainda gozou de grande credibilidade perante público e crítica - o que culminou, por fim, na premiação com o Oscar de melhor ator para Humprey Bogart.
Para muitos executivos, entre eles Louis B. Mayer, John Huston optara por fazer filme de arte com o dinheiro alheio, ao passo que deixara para sua própria companhia a realização de um filme de estrelas, cujo retorno financeiro era garantido.
Neste sentido, é difícil crer em má-fé do cineasta, afinal, não há como visualizar um demérito de sua atuação em qualquer dos trabalhos mencionados. A Glória de Um Covarde ensejará sempre a dúvida sobre aquilo que poderia ter sido caso a visão de Huston fosse respeitada, contudo, o resultado apresentado após as controvérsias dos bastidores, revela um trabalho irregular, mas que em seu conjunto consegue se firmar como uma adaptação cinematográfica mediana mas jamais descartável – como L.B. insistia em tratá-la.
Outrossim, não resta dúvida de que uma vez aprendidas as lições do fracasso, Huston dirigiu Uma Aventura na África imbuído do evidente intuito de agradar, o que consegue fazer sem qualquer manipulação. Seu grande trunfo, neste diapasão, consiste em extrair despojadas interpretações de seu casal de protagonistas e ainda colocá-los em situações cômicas e constrangedoras que se tornam ainda mais curiosas por envolverem atores que já eram há muito tempo ícones do cinema.³
Logo, a aprovação ou reprovação do público para com um produto não deverá em qualquer hipótese servir como elemento único a definir a qualidade do último. Destarte, a distinção entre os cinemas autoral e comercial estará sempre em voga, fomentando debates e críticas. Resta-nos torcer, então, pelo equilíbrio dos cinemas para que, desse modo, seja preservado algo um tanto quanto menosprezado pela indústria nas últimas décadas: o comprometimento perante a inteligência do espectador.
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(1) Na condição de fundador, junto a outros, dos estúdios MGM e de criador do chamado star system.
(2) Lilian Ross. Filme. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 237.
(3) Vale lembrar, ainda, que Huston abdicou de todo e qualquer lucro sobre o que fora amealhado por Uma Aventura na África, quando desfez sua sociedade com Sam Spiegel logo em seguida ao lançamento do filme nos cinemas. O motivo do racha: a descoberta de negociações escusas do produtor e levantamento de suspeitas sobre a origem do dinheiro levantado para a produção de seus filmes.
Dario Façanha (texto originalmente publicado em http://www.setimacritica.blogspot.com)
COTAÇÕES:
A Glória de Um Covarde - ☼☼☼
Uma Aventura na África - ☼☼☼☼
Ficha Técnica - A Glória de Um Covarde
Título Original: The Red Badge of Courage
Direção: John Huston
Roteiro: John Huston e Albert Band
Ano: 1951
Duração: 69 minutos
Ficha Técnica - Uma Aventura na África
Título Original: The African Queen
Direção: John Huston
Ano: 1951
Duração: 105 minutos