UM ESTUDO DE CASO
Lars Von Trier é um dos
poucos diretores atualmente que ainda mantém o vigor e o rigor
nos seus
trabalhos conseguindo surpreender até seus admiradores, digamos
assim, mais
iniciados. Tem no currículo filmes importantes como “Europa”
(1991),“Dançando no
Escuro” (2000), “Anticristo” (2007) e “Melancolia” (2011). Colecionador
de polêmicas, reconhecido pelo radicalismo e a difícil
convivência no set de
filmagens, o enfant terrible é um
mestre quando o assunto é cinema. Foi um dos mentores do movimento
DOGMA 95, e depois de romper com as
regras do manifesto, seguiu
fazendo um cinema que tem a sua marca própria.
Lars retorna ao centro das
atenções com seu perturbador
“NINF( )MANÍACA - VOLUME I”(2013), uma espécie de estudo de
caso sobre uma mulher
que descobre sua sexualidade precocemente
e envereda pela compulsão ao
sexo. O título por si só
já é um chamariz aos desavisados que, sem conhecer o mínimo sobre
o diretor Lars e sua obra, vão em
busca de sexo explícito gratuito próprio dos filmes pornôs. Em NINF( )MANÍACA existe o
erotismo e a sexualidade no sentido mais sério a ser abordado e nenhuma pornografia
própria do gênero de filmes do tipo. Desse
modo, somos convidados a participar do
divã proposto por Lars Von Trier com o Sr. Seligman (Stellan Skarsgard) e sua “paciente”
Joe (Charlotte Gainsbourg) - a
analogia é pertinente
pois a construção cenográfica remete a essa câmara de atmosfera psicológica em que
somos imersos. Uma solução narrativa inteligente do diretor
para nos prender atentamente aos
relatos de Joe.
Partindo de metáforas e imagens por vezes poéticas, passando
por cenas um tanto cruéis
e outras pouco confortáveis, o sexo é tratado de forma densa e com tamanha profundidade como foi em “SHAME” (2011) de
Steve MacQueen que mostrou o personagem Brandon
(Michel Fassbender) em estágio de
equivalente obsessão sexual. Ambos personagens vêem o
sexo como forma
de poder sobre os(as) parceiros(as) inicialmente, mas depois
acabam sucumbindo ao vício
da satiríase e
da ninfomania.
Tema tabu por excelência, difícil e arriscado
de ser explorado no cinema, Lars
consegue até arrancar alguns
risos (nervosos) com seu humor sutil e por vezes prosaico – o que não compromete o conteúdo do
filme. Entretanto, ele provoca
a platéia através de uma espécie de voyeurismo psicológico: adentramos
na história da vida
sexual de Joe e essa sexualidade tão super exposta é mais
subjetiva e multiforme do
que se imagina. Joe é a
prova dessa complexidade através de cada
experiência narrada. Fica para o
espectador a difícil tarefa de julgar se Joe é
de fato um ser
humano ruim sem amor próprio ou vítima de uma psicopatologia ou as duas
coisas.
O
filme vai crescendo à
medida que Joe, sem qualquer pudor, apresenta seu particular universo deixando pistas de uma vida marcada por
conflitos pessoais e familiares . Joe
é como um estudo de
caso, uma referência e não segue um
padrão. Seus parceiros e os
implicados em sua rede de
relações, sejam sexuais ou não,
são designados por iniciais (Srta. B,
Sr. e Sra. H) o que dá
um tom de
relato de literatura médica para
cada capítulo do livro de Lars. Os
limites entre prazer
e morte são bem
estreitos na vida da personagem
- como não lembrar da obsessiva busca pelo
prazer em “O Império dos Sentidos” (1976) de Nagisa Oshima? Fato bem ilustrado na cena em que Joe se defronta com a morte. Patologia sexual ou
reação involuntária das emoções? Lars nos estimula
a refletir numa atitude que
toma o lugar de qualquer reação (in)consciente comum da platéia diante
da nudez e da
pluralidade de práticas sexuais
colocadas na tela. Nos damos
conta de que a sexualidade
configura uma identidade tão pessoal e intransferível como
as impressões digitais que
cada um traz consigo.
Interessante também atentar para algumas escolhas estéticas
de Trier para contar sua
história. Ele lança mão
de elementos visuais (gráficos, pictóricos e
imagéticos) e intertextuais (música, matemática, filosofia
e literatura) para enriquecer o diálogo
com a platéia sobre um assunto
ainda considerado tão proibido, aliás recursos
muito explorados também por Peter
Greenaway em seus filmes.
Se o VOLUME I do “livro”
de Lars Von Trier é instigante e
muito bem escrito filmica e retoricamente, ficamos ávidos pelo VOLUME II que se avizinha por meados
de março nos cinemas
brasileiros. Lars Von Trier é um
dos poucos realizadores
que pode fazer o que deseja sem
preocupar-se com gregos e
troianos. Sem dúvida, NINF( )MANÍACA – VOLUME I já
é um dos melhores
filmes de 2014.
Elias Neves (texto originalmente publicado em http://www.eliasneves.blogspot.com)