A PRAIA DE KARIM AÏNOUZ
A
exuberante eloquência da fotografia de “Praia do Futuro” (2013) de Karim Aïnouz
demonstra muito mais que uma simples escolha de locação ou tentativa
de situar os personagens social e culturalmente. As ondas do mar, a
intensa luz solar, o azul do céu e o forte vento da Praia do Futuro não são
suficientes para preencher as angústias e os anseios de Donato (Wagner
Moura), o salva-vidas que perde uma vítima para o traiçoeiro mar de Fortaleza
no Ceará. É nesse ponto de trágico encontro que inicia a complexa relação entre
o estrangeiro Konrad (Clemens Schick) e Donato. Por outro lado, a cinzenta e
fria Berlim de Konrad se mostra um possível porto de felicidade na vida de
Donato. Esse contraponto, por meio da fotografia, é de uma beleza ímpar, pois
sugere os estados de alma do protagonista no seu jogo de perder-se e
encontrar-se na árdua busca por um sentido na vida, pelo amor
e pela realização pessoal.
Karim
Aïnouz nos convida a mergulhar nesse mar psicológico
do personagem Donato que é mais denso e profundo que o mar
que ele tantas vezes enfrentou e salvou outras vidas. Agora,
Donato tenta salvar a sua própria vida e tomar decisões, o que parece ser
tarefa mais difícil que o seu próprio ofício de guarda-vidas.
O sumiço do corpo do afogado cria uma atmosfera tão enigmática e misteriosa que
a cena das buscas no mar bravio lembrou-me “A Aventura” (1960) de
Antonioni, que também mostrava um desaparecimento como ponto de partida
para o envolvimento de paixão entre um casal e os desdobramentos
psicológicos que se desenrolam a partir do sinistro incidente no grupo de
amigos em uma ilha no mar Mediterrâneo.
Mais
uma vez, Karim Aïnouz explora com maestria a complexidade das relações de afeto
entre as pessoas. Se em “Abismo Prateado” (2011) acompanhamos Violeta
(Alessandra Negrini) em sua dor de amor gerada pelo súbito abandono do marido,
em “Praia do Futuro” há um triângulo amoroso não convencional que envolve
o irmão Ayrton (Jesuíta Barbosa) que é abandonado e esquecido ainda
criança na isolada praia pelo irmão mais velho Donato, que decide morar na
Alemanha em companhia de Konrad. A difícil equação das contas
que envolvem o amor fraterno de Ayrton e o amor de Donato por Konrad parecem, à
primeira vista, não ter uma solução feliz. Há uma contextura de ressentimento e
revolta que vão se acomodando à medida que os irmãos se reencontram, anos
depois, em Berlim. Já o sentimento de Donato por Konrad não suporta o grande
vazio deixado pelas referências e laços de afeto ligados às origens do
brasileiro em seu autoexílio.
É um
filme sobre buscas. A busca por conhecer a si mesmo, a busca pelo outro, a
busca pelo irmão-herói amado da infância, a busca pela zona de conforto
almejada por todos, mas que não está em uma bela paisagem de um país tropical
“onde se tem a obrigação de ser feliz” ou na possibilidade de segurança
financeira e profissional num país frio e cinzento do primeiro mundo. “Ouvi
dizer que no Brasil todas as pessoas são felizes!” – retruca a atendente do pub
alemão onde Donato se embebeda.
O
filme causou um burburinho desnecessário no Festival de Berlim, nas redes
sociais e na mídia aberta por conta das cenas de sexo e
nudez entre os dois protagonistas. Recentemente, uma
rede de cinemas alertava, carimbando nos ingressos a palavra “AVISADO”, caso
os espectadores reclamassem do teor homossexual dos personagens.
Definitivamente “Praia do Futuro” não é um “filme gay”. É um filme sobre a
nossa frágil e complexa humanidade. Na sessão em que estive, perdi a conta de
tanta gente que abandonou o filme logo nos primeiros 25 minutos talvez
pelo desconforto diante das referidas cenas. Também pude perceber a
reação preconceituosa da plateia com as cenas de sexo. Havia muitos jovens na
sala rindo e debochando das atuações de Wagner Moura e Clemens Schick. Acredito
que eles entraram no cinema para ver se o “Capitão Nascimento” ressuscitava ou
para ver o ator das novelas. Eles não foram ver o ator em seu criativo e
desafiador ofício de fazer mais um personagem. Para esse público restam as
neochanchadas de gosto duvidoso do atual cinema brasileiro com suas mesmas
historinhas cada vez mais rasas e sem conteúdo.
De
fato, a praia de Karim Aïnouz não pode e nem deve ser frequentada por qualquer
um. Não por ser uma praia perigosa de ondas grandes. A
praia de Karim exige um pouco mais de inteligência ou apenas
legitima curiosidade dos seus frequentadores. A praia de
Karim Aïnouz ainda assim está com livre acesso a todos. Bom mergulho!
Elias Neves (texto originalmente publicado em http://www.eliasneves.blogspot.com)